*texto de Luiz Gonzaga Belluzzo
O economista Michel Kalecki formulou nos anos 30 a famosa parêmia: “os capitalistas ganham o que gastam e os trabalhadores gastam o que ganham”. O economista polonês Michael Kalecki utilizou os esquemas de reprodução de Marx para formular o princípio da demanda efetiva. As equações de Kalecki exprimem as condições de reprodução do sistema capitalista com dois ou três departamentos (ele inclui um departamento III que produz os bens de consumo dos capitalistas). Ao utilizar os esquemas de reprodução, Kalecki procura mostrar que o princípio da demanda efetiva já está posto no volume II de O Capital. Aí Marx estabelece a distinção entre as condições de produção de mais-valor – que dependem da capacidade produtiva da sociedade – e as condições de realização do valor que decorrem das antecipações dos capitalistas, ou seja, dependem das decisões da classe capitalista de renovar o circuito D-M-D’. A reiteração ampliada do circuito D-M-D’ pelo dispêndio da classe capitalista – aí incluído o Estado – deve aumentar simultaneamente a capacidade de produção da economia (investimento) e a massa de salários que sustenta o consumo dos trabalhadores e demais dependentes.
É preciso deixar claro que a distinção entre as condições de criação e de realização do valor não supõe que o valor possa ser criado antes de sua realização. As engrenagens de classe que sustentam a criação de valor e mais-valor não se movem sem o gasto dos capitalistas, senhores das decisões cruciais nesse regime de produção. Devemos insistir na ideia crucial de Marx: no circuito D-M-D’, o dinheiro é riqueza potencial. Inscrita na forma Reprodução ampliada, a reiteração do circuito Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro suscita a criação de mais valor. Na verdade, os esquemas de reprodução ampliada procuram demonstrar a dinâmica da economia capitalista, o que envolve desvendar as conexões entre o movimento da estrutura monetária e produtiva e as expectativas que informam as decisões dos detentores dos meios de produção e do crédito. A partir da constituição das forças produtivas especificamente capitalistas, ou seja, da subsunção real da força de trabalho ao domínio do capital e da concentração do capital-dinheiro no sistema de crédito são as variações nos gastos que determinam as variações na massa de lucros e na massa de salários, dado o grau de monopólio, uma proxy da taxa de exploração. As categorias de gasto, aqui, estão definindo relações de propriedade. Essas relações afirmam a possibilidade da classe capitalista – que tem o monopólio dos meios de produção e o controle do sistema de crédito- de gastar acima de seus rendimentos correntes, em contraposição a outra classe, os trabalhadores, adstrita a gastar apenas aquilo que ganha.
Assim, comentando a equação: “Lucros Brutos = Investimento Bruto + Consumo dos Capitalistas”, Kalecki se pergunta sobre o seu significado: “Significa ela, por acaso, que os lucros, em um dado período, determinam o consumo e o investimento dos capitalistas, ou o inverso, disto? A resposta a esta questão depende de se determinar qual destes itens está sujeito diretamente às decisões dos capitalistas. Fica claro, pois, que os capitalistas podem decidir consumir e investir mais em um dado período, do que no precedente. Mas eles não podem decidir ganhar mais. São, portanto, suas decisões de investimento e consumo que determinam os lucros e não vice-versa”. Esta visão do capitalismo, aliás, não é prerrogativa de Marx ou Kalecki, mas é compartilhada por outros dois grandes analistas desse regime de produção: Keynes e Schumpeter. Na versão keynesiana do princípio da demanda efetiva, o investimento e o crédito são as variáveis independentes que determinam a criação da renda monetária e, portanto, a distribuição do valor criado pelo gasto na produção de bens de consumo e bens de produção entre lucros e salários.
Os fundadores do método de análise da economia como um todo – contrariando o senso comum – sustentam que o crescimento da renda da comunidade e dos lucros empresariais depende da disposição de empresários, consumidores, governo ou os compradores estrangeiros possam realizar um dispêndio superior ao que estão ganhando, isto é, estejam colocando mais dinheiro na economia do que estão tirando. Essa “aceleração” do dispêndio agregado é que vai induzir o crescimento dos lucros e da renda. O capitalismo é um regime histórico de produção que se desenvolveu a partir da interação virtuosa entre a divisão social do trabalho e a generalização do mercado. Em seu desenvolvimento foram gestadas técnicas e formas de produção, como o sistema automático de máquinas e uso de energia não-humana, que o diferenciam radicalmente de outras formações sociais e econômicas. A consequência mais importante da generalização do mercado é o assalariamento, ou seja, a livre contratação de trabalhadores mediante o pagamento de salário monetário.
Como já foi dito em capítulo anterior, a Revolução Industrial engendrou a separação entre os setores de bens de produção e bens de consumo. A divisão interna do trabalho na manufatura celebrada por Adam Smith suscitou a mecanização das funções e a utilização crescente de máquinas cuja produção “industrializada” promoveu a divisão social do trabalho entre o departamento de bens de produção e o departamento de bens de consumo. A geração de valor e de mais valor, ou seja, a geração da renda e sua distribuição entre lucros e salários, impôs a diferenciação entre os valores de uso adequados à reprodução das classes sociais que contribuem para a criação da riqueza. Por sua “natureza” material, os bens de produção, particularmente os bens de capital fixo, não podem ser consumidos, ou melhor, o seu “consumo” só pode ocorrer ao longo do tempo, se mobilizados pelos gastos de investimento dos possuidores de riqueza para produzir outros bens.