*escrito por André Roncaglia
O que ocorreu com o Silicon Valley Bank (SVB)? Uma apresentação para leigos: depois do evento, os temores que se seguem à quebra de bancos levou o Estado a garantir os depósitos dos clientes do banco, podemos olhar com mais calma o que ocorreu, se e como isso afeta o Brasil. SVB é um banco baseado na California que concentrava sua clientela em startups do Vale do Silício. Metade das startups do país tinha conta no banco, que oferecia serviços bancários com a grife de banco das startups de tecnologia. O ecossistema formado tinha traços singulares. As empresas levantam dinheiro vendendo participação acionária aos capitalistas de risco (venture capital) e depositavam no banco. Mais de uma década de taxas de juros perto de zero e trilhões de US$ injetados na economia gerou um ingresso de recursos no SVB acima de US$ 100 bi. Sem ter muito o que fazer com tanto dinheiro dos clientes que entrava (chamamos de passivo), o banco aplicava os recursos em títulos do Tesouro americano ou em hipotecas garantidas pelo governo dos EUA, com risco de inadimplência nulo (chamamos este lado de ativo do banco).
A estabilidade do banco depende de passivo e ativo se equilibrarem ao longo do tempo. Se o dinheiro que entra (passivo) pode sair a qualquer momento, o ativo do banco precisa gerar recursos que atendam a esta demanda por saques. Aqui que começa a particularidade deste episódio. A clientela do SVB se concentrava em um nicho da economia (startups) que não dependia dos empréstimos do banco por que conseguia dinheiro diretamente dos capitalistas de risco (VC). Principalmente a partir de 2021, o dinheiro só entrava. Para conseguir retornos mais elevados o banco aplicava em títulos públicos com vencimento mais distante (10 anos). Lembra da ausência de risco de inadimplência por ser título do governo? Pois é, ele não é o único risco. Como os títulos eram prefixados em taxas muito baixas, o valor deste ativo cairia se o FED subisse a taxa de juros. Este é o risco de taxa de juros em títulos de renda fixa. Como o banco tinha cerca de metade do seu ativo nestes títulos, cada 0,25 ponto percentual de subida da tx juro gerava prejuízo de US$ 1 bilhão ao banco. O FED subiu 18x este valor (p/ 4,75%). Por que ninguém viu este problema? O banco não era obrigado a mostrar o valor do seu ativo com “marcação a mercado”. Como o banco pretendia esperar até o vencimento do título para ter seu dinheiro de volta, ele deixava no balanço o valor de face. Se tentasse vender o ativo no mercado, o valor dele seria bem menor do que aquele mostrado no balanço. Como a ideia era segurar até o vencimento, o banco registrava o “valor cheio”. Tudo parecia bem e, de fato, estava. Por quê? Se os clientes não fizessem saques muito grandes, o banco daria conta de honrar os saques. Como o balanço do banco estava descasado (depósitos de curto prazo e aplicações de longo prazo), ele passava a depender dos depósitos assegurados pelo Fundo Garantidor de Crédito dos EUA (FDIC), que garante até USD 250 mil dos clientes em caso de quebra. Qual era o problema, então? Se o banco quebrasse, bastava esperar a cobertura deste fundo, não? Como os clientes não são muitos, mas eram grandes, cada um tinha bilhões de US$ depositados. Assim, menos de 3% dos depósitos do SVB eram cobertos pelo seguro. A média nos EUA é de 30%.
Como vimos, o banco estava exposto ao risco de taxa de juros, mas estava também muito sujeito ao risco de liquidez. Por quê? Apenas uma fração do ativo do banco esta “disponível para venda” para atender a eventuais saques dos clientes. O arranjo da quebra estava montado. Conforme o FED tirava liquidez da economia, subindo a taxa de juros, o setor de tecnologia começou a fazer ajustes em suas contas. Com menos capital disponível, os clientes começaram a sacar recursos das contas para honrar suas despesas. O SVB teve então de levantar recursos. Como? Vendendo seus títulos no mercado. Só que aqueles títulos que eram avaliados em US$ 1000 a unidade no balanço do banco valiam bem menos. Por exemplo, se valessem US$ 980, estes $20 de diferença multiplicados pelos bilhões aplicados geram uma perda bilionária ao banco. Estes investimentos do banco não eram nada ousados, quando comparada com criptomoedas ou ações na bolsa. A combinação de riscos de taxa de juros e de liquidez foi o que produziu as condições do colapso do SVB. Na base disso está a desregulação dos bancos menores em 2018. Jerome Powell defendeu a abordagem do Fed à regulamentação financeira. Ele não via necessidade de regras mais rígidas (…), embora endossasse a redução da regulação para os bancos menores.
SVB se mobiliza então para vender seus títulos no mercado e anuncia que vai levantar capital vendendo participação acionária. A necessidade de capital era na casa dos bilhões. Claramente desacostumada com comunicações aos clientes, a diretoria solta declarações descuidadas, com muitas tabelas e poucas explicações. O temor se espalha entre clientes e investidores. A comunicação em grupos de WhatsApp com capitalistas de risco (VCs) e declarações no Twitter disseminam a desconfiança. Os VCs aconselham as startups a sacar seus fundos do SVB antes que o restante dos clientes o faça. A corrida bancária começa turbinada pela facilidade dos aplicativos digitais de serviços bancários. A corrida não é mais das pernas indo até o banco, mas a dos dedos nos smartphones e teclados de computador. Em 24h, SVB sofre o maior saque da história (US$ 42 bilhões). Sem fundos, o banco quebra. O governo responde, dizendo que os depósitos dos clientes serão garantidos. Os mesmos VCs libertários que repeliam a regulação bancária, agora clamam pelo salvamento do banco. É a velha máxima da hipocrisia ultraliberal: “capitalismo na subida, socialismo na queda”. O sistema financeiro é uma intricada rede de promessas de pagamento: a falta de liquidez se espalha facilmente. O Signature Bank seguiu a mesma rota do SVB. Até segunda-feira (13/03), apenas bancos menores estavam na berlinda. O problema estava relativamente contido. Mas agora um banco enorme, Credit Suisse, começa a apresentar problemas similares de falta de liquidez e, como o SVB, sofre perdas monumentais de valor no mercado. As ações do banco já caíram cerca de 40% em alguns dias. Como isso afeta o Brasil? O evento do SVB sozinho não nos afeta diretamente. Se as repercussões afetarem os grandes bancos sucessivamente, a história muda: a crise localizada no segmento regional do sistema financeiro dos EUA se torna internacional. Saberemos em breve.
Li que boa parte dos ativos estava em criptomoedas. Não mencionas isso. Criptomoeda é dólar?
era pouco. o grosso do prejuízo veio de títulos públicos e privados