*texto de Luiz Gonzaga Belluzzo
Nos debates que se seguiram à publicação da “Teoria Geral”, Keynes não conseguiu demonstrar a seus críticos e comentadores – Hayek e Hicks entre eles – que o princípio da demanda efetiva era uma ruptura radical com os postulados da chamada teoria clássica. Na tentativa de não assustar a tigrada e a si mesmo, Keynes, enfant terrible do establishment britânico, refugiou-se numa argumentação contemporizadora que escondeu a natureza revolucionária dos conceitos de demanda efetiva e de preferência pela liquidez. Keynes procurou traduzir para a linguagem de seus críticos a inversão radical produzida nas relações de determinação entre os fluxos de gasto e renda, investimento e poupança. Na History of Economic Analysis, Schumpeter surpreende uma concessão de Keynes à ortodoxia de seu tempo. Na caminhada entre o Treatise on Money e a Teoria Geral, Maynard abre o flanco para John Hicks construir o modelo IS/LM. Apesar de ter assegurado sua renúncia ao quantitativismo, Keynes, na Teoria geral, não conseguiu se libertar completamente de suas amarras. Ao tratar M (a oferta de moeda exógena) como variável independente”, prestou reverência à Teoria Quantitativa. Joseph Schumpeter chamou a teoria que estuda a engrenagem financeira do capitalismo de Teoria Creditícia da Moeda e não Teoria Monetária do Crédito. Escapando de suas reverências walrasianas, no seu Treatise on Money, Schumpeter ridiculariza a Teoria Quantitativa: “falar de uma quantidade de unidades de conta faz tanto sentido quanto dizer que um certo número de unidades métricas está presente em todas as extensões que devem ser medidas.” Para Maynard e Schumpeter, a economia em que vivemos ou tentamos sobreviver não é uma economia simples de intercâmbio de mercadorias. É uma economia mercantil, monetária e capitalista. Nela as decisões de produção envolvem inexoravelmente a antecipação de dinheiro agora para receber mais depois. A mobilização de recursos reais, bens de capital, terra e trabalhadores depende de adiantamento de liquidez e assunção de dívidas. O movimento dos mercados começa e termina com dinheiro, dinheiro em suas funções cruciais de poder de compra universal e forma geral da riqueza. Mercadorias, ativos reais e financeiros são avaliados monetariamente nos balanços de bancos, empresas, famílias, sempre arriscados a “perder valor” no momento da conversão em dinheiro.
Mitchell argumenta corretamente que Schumpeter desenha um sistema de contabilidade baseado na divisão da economia entre famílias, empresas, bancos e o banco central. A partir dessas relações entre os balanços dos protagonistas do processo econômico capitalista, Schumpeter estuda o papel do sistema bancário como um lócus de compensação entre débitos e créditos. O banco central é a cúspide desse sistema, a última instância da compensação e regulação das transações que passam pelo sistema bancário. É essa forma sistêmica de coordenação que confere ao sistema bancário o poder de criar moeda: a emissão de novos créditos cria simultaneamente depósitos. Ao concentrar capital monetário, os bancos ganham a prerrogativa de abastecer as necessidades de liquidez da economia. Isso impõe as regras de gestão monetária: a moeda de crédito, ao mesmo tempo em que transforma os bancos em emissores de meios de pagamento também concede uma centralidade incontornável ao Banco Central. Essa instituição estabelece as mediações entre os bancos privados e a soberania monetária do Estado. O Banco Central cuida de regular as delicadas relações entre a moeda como bem público – ou seja, referência “confiável” para as decisões de endividamento destinado a prover liquidez à produção, ao consumo e ao investimento – e sua “outra” natureza, a de objeto do enriquecimento privado. Inspirado em Keynes, Hyman Minsky procura mostrar que a concorrência entre os possuidores de riqueza afeta as avaliações dos que buscam a maximização do ganho privado. Para ele, as decisões privadas – tomadas em condições de incerteza radical – estão sempre sujeitas à má avaliação do risco e à emergência de comportamentos coletivos de euforia que conduzem à fragilidade financeira e a crises de liquidez e de pagamentos. As decisões capitalistas supõem, portanto, a especulação permanente a respeito do futuro, o que envolve a contínua reavaliação do presente. “As decisões financeiras”, diz Minsky, “são tomadas em torno de um futuro imaginado por credores e devedores como resultado de negociações em que são trocadas informações e desinformações. O resultado reflete opiniões sobre um projeto particular à luz dos sucessos e fracassos da economia no passado recente e no mais distante… A incerteza em relação ao modelo adequado para formar as expectativas pode ser maior se muitos anos se passaram desde a última crise financeira… Essa incerteza fundamental significa que as margens de segurança calculadas pelos agentes devem variar”.
A função reserva de valor é sobremaneira incômoda e intratável nos modelos de equilíbrio que tratam o dinheiro como simples meio de troca. Esses modelos não contemplam o dinheiro em sua natureza essencial de forma geral da riqueza. A eliminação do verdadeiro espírito do demônio monetário, o fetiche da liquidez, permite às hipóteses de Equilíbrio Geral ignorarem suas diabruras, os episódios de euforia e os colapsos “baixistas”. Na Teoria Geral, Maynard chamou a atenção para a importância das relações contraditórias entre o fetiche da liquidez – a cruel tentação do demônio – e as decisões de investimento, a aquisição de novos bens de capital. O preço de demanda dos bens instrumentais é calculado mediante o desconto dos rendimentos esperados pela taxa de juro de mercado, a taxa que exprime a disposição dos proprietários de riqueza de abrir mão da liquidez. O capítulo XVII da Teoria geral é uma digressão sobre as decisões sobre a posse da riqueza na economia capitalista. A avaliação prospectiva dos ativos reais e financeiros está subjugada à incerteza radical quanto à possibilidade da conversão dos valores à forma geral da riqueza. “Este é o resultado inevitável dos mercados financeiros organizados em torno da chamada ‘liquidez’. Entre as máximas da finança ortodoxa, seguramente nenhuma é mais antissocial que o fetiche da liquidez, a doutrina que diz ser uma das virtudes positivas das instituições investidoras concentrar seus recursos na posse de valores ‘líquidos’. Ela ignora que não existe algo como a liquidez do investimento para a comunidade como um todo. A finalidade social do investimento bem orientado deveria ser o domínio das forças obscuras do tempo e da ignorância que rodeiam o nosso futuro. O objetivo real e secreto dos investimentos mais habilmente efetuados em nossos dias é ‘sair disparado na frente’ como se diz coloquialmente, estimular a multidão e transferir adiante a moeda falsa ou em depreciação”.
Prossegue Keynes: “Esta luta de esperteza para prever com alguns meses de antecedência as bases de avaliação convencional, muito mais do que a renda provável de um investimento durante anos, nem sequer exige que haja idiotas no público para encher a pança dos profissionais, a partida pode ser jogada entre estes mesmos. Também não é necessário que alguns continuem acreditando, ingenuamente, que a base convencional de avaliação tenha qualquer validade real a longo prazo. Trata-se, por assim dizer, de brincadeiras como o jogo do anel, a cabra-cega, as cadeiras musicais. É preciso passar o anel ao vizinho antes de o jogo acabar, agarrar o outro para ser por este substituído, encontrar uma cadeira antes que a música pare. Esses passatempos podem constituir agradáveis distrações e despertar muito entusiasmo, embora todos os participantes saibam que é a cabra-cega que está dando voltas a esmo ou que, quando a música para, alguém ficará sem assento”. (Keynes, Teoria Geral, p.129, 1936).
Risco Sistêmico e Crises recorrentes nos Mercados Financeiros
Risco sistêmico pode ser definido como “a possibilidade latente – desconhecida pelos participantes do mercado, ou contra a qual estes não se protegeram – de que um evento possa ocorrer”, movendo a economia na direção de um equilíbrio socialmente ineficiente”. O professor Michel Aglietta um dos mais eminentes especialistas em assuntos financeiros, assessor do Banco Central Europeu, ensina que são duas as hipóteses gerais das teorias sobre a possibilidade de ocorrência de eventos sistêmicos numa economia monetária:
- os chamados novo-keynesianos privilegiam informação assimétrica em mercados de crédito, o que pode conduzir à subestimação do risco e ao subsequente sobre-endividamento, fazendo surgir a fragilidade financeira, que resulta em um aumento acentuado no custo da intermediação financeira/ou em uma contração endógena na oferta de crédito (credit crunch).
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O economista americano Hyman Minsky sublinhou o papel da formação de preços de ativos em condições de liquidez restrita, descrevendo com propriedade a alternância de euforia e desilusão- inerente às economias capitalistas – geradas por fortes interações subjetivas entre os participantes do mercado – capazes de provocar comportamentos coletivos como o contágio e o pânico.
Para o primeiro grupo de autores, o risco sistêmico pertence à categoria de fenômenos econômicos que decorrem de falhas de coordenação dos mercados. Falhas de mercado, na linguagem técnica, dizem respeito a déficits insuperáveis no abastecimento de informações aos agentes envolvidos numa transação. No caso dos mercados financeiros, tais falhas são produzidas por assimetria de informação, geradora de seleção adversa e moral hasard. A assimetria de informação é inerente à relação credor-devedor: o bem transacionado não é um valor real disponível, mas uma promessa, o que dificulta aos contratantes avaliar adequadamente as condições e as intenções do outro protagonista. Haverá seleção adversa quando o credor – incapaz de avaliar corretamente o risco de concessão dos empréstimos – discrimina os bons devedores potenciais, elevando o custo do crédito. O risco moral é fruto da incapacidade do prestamista de supervisionar corretamente o uso do crédito por parte do devedor, que pode estar empenhado em aplicar o dinheiro em operações de maior risco.
Já para os minskianos, que reclamam a legítima descendência keynesiana, a concorrência entre os possuidores de riqueza determina o resultado da ação dos indivíduos racionais em busca da maximização do ganho privado. Para eles, as decisões privadas são tomadas em condições de incerteza radical e, por isso, estão sempre sujeitas à sub-avaliação do risco e à emergência de comportamentos coletivos de euforia que conduzem à fragilidade financeira e a crises de liquidez e de pagamentos.
Numa economia com estas características, tanto a produção de mercadorias quanto a acumulação de ativos é uma aposta, em condições de incerteza, na capacidade das formas particulares de riquezade, no momento da conversão, preservarem seus valores em dinheiro, proporcionando, ao mesmo tempo, um ganho ao capitalista. A avaliação positiva quanto à possibilidade de ganhos ou de valorização monetária de seu patrimônio leva os produtores e detentores de riqueza à decisão de colocar em funcionamento a capacidade produtiva existente e/ou de ampliar o estoque de riqueza produtiva ou mobiliária sob seu controle.
Em cada momento, podemos imaginar a existência na economia de uma estrutura de ativos resultantes das decisões passadas à qual estão se agregando os resultados das decisões presentes quanto à posse de ativos de capital e à forma de financiá-los. Estes ativos são genericamente direitos à renda futura. A posse destes ativos foi obtida mediante contratos de dívida (prazos, condições e risco), que não exigem apenas pagamentos certos e fixos, mas podem incluir pagamentos variáveis de acordo com os resultados da operação corrente dos ativos.
Os contratos de dívida sempre mereceram uma atenção especial porque embora amparem o financiamento de ativos de rendimento incerto, obrigam a pagamentos certos e regulares. Isto corresponde à natureza contratual (relativa ao “capital propriedade”) das dívidas e pagamentos de juros. Nesse sentido, a estabilidade das condições contratuais significa uma rigidez dos compromissos correntes, que equivale, como observou Keynes, a uma duplicação do risco. Assim, a economia capitalista pode ser vista como um sistema de balanços inter-relacionados que registra a acumulação de ativos e de dívidas. Estes ativos e estas dívidas possuem diferentes graus de liquidez, ou seja, possibilidades maiores ou menores de serem “transformados” no ativo líquido de aceitação geral e imediata.
O que foi dito acima procura sublinhar que, numa economia monetária, coordenada pela moeda de crédito, os possuidores de riqueza não estão sujeitos, primordialmente, à chamada “restrição orçamentária,” senão a duas outras restrições fundamentais: a de liquidez e a de pagamento. A restrição de liquidez tem um significado preciso e diz respeito à norma fundamental da economia monetária: a posse de ativos de riqueza está determinada pela comparação entre as vantagens de se conservar a riqueza sob a forma “líquida” e a perspectiva de adquirir um ativo, novo ou preexistente, com o objetivo de recuperar o seu valor acrescido de um rendimento. Do ponto de vista individual a situação de “iliquidez” vai ter uma duração igual ao período que decorre entre a decisão de “gastar” e a venda do ativo pelo preço “declarado”. De um ponto de vista puramente formal, o ativo será mais liquido quanto maior for a possibilidades de negociá-lo em mercados organizados sem perda de capital.
A liquidez não é, porém, uma propriedade intrínseca de qualquer ativo particular, mas é gerada pela dinâmica competitiva numa economia monetária, em que as decisões são tomadas em condições de incerteza. Trata-se, portanto, de um fenômeno sistêmico, no sentido de que é resultado de um ambiente em que a racionalidade individual é exercida mediante decisões estratégicas dos protagonistas, apoiadas em expectativas a respeito das expectativas dos demais. Como já foi dito, a “aposta” dos proprietários de riqueza supõe que serão respeitadas as regras que garantem a “credibilidade” do padrão monetário, o que significa, fundamentalmente, o estabelecimento de limites ao refinanciamento das posições devedoras que sustentam a posse de ativos “desvalorizados” ou ilíquidos. Um “estado negativo das expectativas” pode envolver não só uma avaliação pessimista quanto à possibilidade de se alcançar a recompensa da conversão de sua mercadoria ou ativo particular na “mercadoria universal”. Mas há também o temor de que, chegando à transfiguração desejada, o possuidor de riqueza receba dinheiro cujo “prêmio de liquidez” está ameaçado por práticas “abusivas” de monetização das dívidas.
Os limites ao refinanciamento das posições devedoras não podem ser definidos a partir de critérios absolutos e imutáveis, mas dependem das convenções que refletem a correlação de forças entre credores e devedores e – trataremos disto mais à frente – da percepção do banqueiros centrais de que os riscos de liquidez ou de solvência gerados endógenamente pelo funcionamento dos mercados podem precipitar uma crise sistêmica.
Nos sistemas monetários e financeiros constituídos depois da Segunda Guerra Mundial, o clima favorável à manutenção do pleno-emprego e às políticas de desenvolvimento permitiu que o pêndulo se inclinasse, durante um bom tempo, para o lado dos devedores. De qualquer forma, os regimes monetários, enquanto conjunto de regras e convenções que sustentam um certo clima de confiança, estão sujeitos a constantes transformações que decorrem da natureza dupla e contraditória do dinheiro e dos bancos no capitalismo. As crises monetárias – agudas ou prolongadas –revelam que o caráter central e centralizador da moeda está submetido à ameaça permanente da concorrência entre os agentes privados que buscam incessantemente a acumulação da riqueza sob a forma monetária.
As decisões capitalistas supõem, portanto, a especulação permanente a respeito o futuro, o que envolve a contínua reavaliação do presente. Tais decisões são, portanto, intrinsecamente intertemporais e não têm bases firmes, isto é, não há “fundamentos” que possam livrá-las da incerteza e da possibilidade do risco sistêmico. Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência os detentores de riqueza são obrigados a tomar decisões que podem dar origem a situações de “equilíbrio múltiplo”( freqüentemente ineficientes do ponto de vista econômico e social) ou a dinâmicas auto-referenciais que culminam na exuberância irracional, na decepção das expectativas, na crise e na desvalorização da riqueza.
A economia monetária competitiva supõe a existência de agentes especializados na avaliação da qualidade dos títulos de dívida e de propriedade, na criação e administração da liquidez e, ao mesmo tempo, capazes de enfrentar uma eventual interrupção na cadeia de pagamentos. Estas funções especializadas historicamente vêm sendo delegadas pelo conjunto do estrato mercantil-capitalista ao sistema bancário e, mais recentemente, às demais instituições reguladoras e de avaliação de risco. Os bancos comerciais são, na verdade, instituições singulares: responsáveis pela criação de moeda, dispõem da faculdade de avançar poder de compra, até então inexistente, aos proprietários de riqueza, a partir da avaliação dos riscos de crédito. Os bancos não são simples intermediários financeiros, mas detêm a prerrogativa de conceder empréstimos que excedem o valor de seus depósitos. A capacidade dos bancos, em conjunto, de expandir o crédito e, portanto de criar depósitos que servem como meios de pagamento, vai depender, numa economia fechada, da demanda do público e do comportamento das reservas em moeda estatal mantidas junto ao banco central. A taxa de desconto e as operações de mercado aberto, manejadas pelo banco central, são a cúspide desse sistema de pagamentos e de provimento liquidez, pois permitem às autoridades monetárias alterar o volume e o custo de acesso ao provimento de liquidez do Banco Central, tornando mais estritas ou relaxadas as condições em que são ofertados os novos fluxos de crédito ou negociados os títulos de dívida e demais ativos financeiros já existentes.
No entanto, o êxito ou fracasso das manobras do banco central está condicionado às alterações no “estado de expectativas” dos possuidores de riqueza. Keynes no Treatise on Money considerava fundamental para o sucesso da política monetária a divisão de opiniões entre altistas e baixistas. Na Teoria Geral esses fenômeno encontrou uma definição mais precisa no conceito de preferência pela liquidez: “a curva de preferência pela liquidez define todos os valores possíveis da taxa nominal de juros de longo prazo, consistentes com o equilíbrio nos mercados de títulos, dadas distintas quantidades de moeda… Ela ilustra estados de equilíbrio virtuais entre a moeda que os agentes desejam reter, antecipando uma subida na taxa de juros, e os títulos demandados em antecipação ao declínio de seus preços, dado o estado de expectativas.” (Ciocca e Nardozzi). O movimento da taxa de juros afeta simultaneamente o valor das dívidas já emitidas ou em processo de emissão e o valor presente dos fluxos esperados de rendimentos dos ativos (instrumentais e financeiros), provocando alterações nas relações entre credores e devedores e aumentando ou reduzindo os riscos de pagamento.
Isto significa que, quando a opinião dos mercados está dividida não ocorrem alterações no “lado monetário” capazes de perturbar a trajetória atual da economia. Se ao contrário, as opiniões se concentram numa só direção, a ação do banco central pode não ser eficaz para estabilizar a economia. Se, por exemplo, há uma polarização de opiniões, em torno de uma posição “altista”, no auge de um ciclo de crédito, a tentativa de contrair a liquidez, mediante uma elevação das taxas de juros pode não funcionar. Se o aumento é considerado insuficiente, os mercados reagirão com maior exuberância. Se excessivo, provocará a queda de preços e, provavelmente, uma crise financeira. É o sistema bancário que deve assumir as funções e administrar simultaneamente os dois riscos, o de liquidez e o de pagamento. O sistema bancário, incluído o Banco Central, deve respeitar as regras “convencionadas” que o obrigam a funcionar como redutor de riscos e de incerteza e como gestor dos limites impostos aos produtores e detentores privados de riqueza, enquanto candidatos a acumular riqueza universal.
Por isso a prerrogativa de criação de moeda pelos bancos privados está subordinada às regras de “conversibilidade”, isto é, das garantias que asseguram o amparo do gestor da “moeda central”, percebida pelos agentes privados como a forma final de liquidação dos contratos. A exigência de conversibilidade das moedas bancárias (de emissão “privada” mas de aceitação geral) na moeda estatal revela o duplo caráter dos bancos (e do dinheiro) na economia capitalista: empresas privadas que visam maximizar a rentabilidade de seu capital num ambiente de concorrência regulado por instituições responsáveis pela gestão da moeda e do sistema de pagamentos. Esta “conversibilidade” não está garantida a priori. Só pode ser testada no momento em que se manifesta a desconfiança no caráter público da moeda emitida privadamente. Isto pode acontecer sob a forma de mudanças abruptas nas avaliações dos mercados quando se vislumbra a possibilidade de deterioração da qualidade dos ativos e cresce o risco – sempre presente nestas circunstâncias – de uma corrida contra o passivo bancário, constituído predominantemente por depósitos à vista. No entanto, nas etapas de prosperidade do ciclo econômico, este constrangimento de conversibilidade parece remoto, dando a aparência de que todos as moedas bancárias tem o mesmo status e são conversíveis nas mesmas condições. Modernamente, os bancos centrais – enquanto intermediários entre o poder soberano do Estado e sistema bancário privado – procuram estabelecer, alem de regras prudenciais e sanções, normas gerais de acesso dos bancos à liquidez na moeda central. Ao mesmo tempo em que impõe regras, sanções e condicionalidades, o Banco Central também funciona como um redutor de riscos e de incerteza para os bancos privados, através dos instrumentos usuais de abastecimento de liquidez. Nos momentos críticos, em que pode estar comprometida a cadeia de pagamentos da economia e, portanto, ameaça irromper uma crise sistêmica, ressalta o seu papel de supervisor e administrador do sistema bancário, ou seja, de “emprestador” de última instância.
Desregulamentação, Integração Financeira e a Emergência do Risco Cambial
Num sistema internacional “regulado”, como o de Bretton Woods, os processos de ajustamento dos balanços de pagamentos deveriam funcionar mais ou menos assim: taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis; limitada mobilidade de capitais; e demanda por cobertura de déficits (problemas de liquidez) atendidas, sob condicionalidades, por meio de uma instituição pública multilateral. O câmbio e os juros, nesse sistema, são preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade constituem-se em guias para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza. Nos últimos vinte anos, a inovação financeira assumiu uma velocidade espantosa, acompanhando a desregulamentação dos mercados e crescente liberalização dos movimentos de capitais entre as principais praças de negócios. A aceleração das inovações foi, sem dúvida, uma resposta ao aumento da volatilidade dos preços dos ativos financeiros denominados em moedas distintas. Num sistema de taxas flutuantes, ampla e rápida mobilidade de capitais e provimento de liquidez e cobertura de riscos efetuadas a partir dos mercados – mediante a ação de agentes privados especializados – as taxas de juros e de câmbio se tornam “endógenas” e ficam mais sensíveis às bruscas mudanças de expectativas dos possuidores de riqueza. Não é de espantar que nesse sistema seja mais frequente a ocorrência de problemas de liquidez, “resolvidos” por meio de amplas flutuações nos preços dos ativos e das moedas.
- As flutuações mais frequentes e mais amplas das taxas de juros e de câmbio, no âmbito de um processo de desregulamentação e de abertura dos mercados, estimularam a criação de novos instrumentos destinados a repartir os riscos de mercado, de liquidez e de pagamento. A criatividade dos mercados concentrou-se sobretudo nas tentativas de reduzir os riscos de mercado, isto é, de variações abruptas dos preços dos ativos e, portanto, de minimizar as perdas de rendimento ou de capital.
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Os chamados derivativos são na verdade instrumentos de repartição de risco. A sua existência sob forma padronizada, em mercados específicos, amplia as possibilidades de hedge dos agentes. Mas, como é óbvio, esses instrumentos apenas repartem, mas não eliminam o risco. É notório que os instrumentos transacionados nos mercados de futuros não podem neutralizar o chamado risco sistêmico, sobretudo quando irrompe uma flutuação pronunciada e não antecipada nos preços dos ativos subjacentes, mesmo que as regras prudenciais, as garantias e chamadas de margem, determinadas pelos administradores dos mercados de futuros, venham sendo impostas e executadas adequadamente.
Os bancos centrais e demais autoridades reguladoras estão, portanto, diante da intensificação da concorrência nos mercados financeiros, promotora de uma rápida transformação das práticas de intermediação, dos métodos de avaliação de ativos e dos riscos associados, bem como de uma alteração da hierarquia e do papel das instituições.
Nas economias contemporâneas, a finança direta e “securitizada” ganhou maior importância e a desregulamentação financeira rompeu os diques impostos, depois da crise dos anos 30, à atuação dos bancos comerciais. Estas transformações ampliaram a sensibilidade das decisões dos possuidores de riqueza diante das mudanças nas expectativas de flutuações nos preços dos ativos. A desregulamentação facilitou o envolvimento dos bancos com o financiamento de posições nos mercados de capitais e em operações “fora do balanço” que envolvem derivativos. Isto não só vem permitindo maior liquidez para estes mercados mas também ensejando um elevado grau de “alavancagem” das corretoras, fundos e bancos de investimento . Quando estes agentes são surpreendidos por movimentos bruscos e não antecipados de preços, as perdas estimadas obrigam à liquidação de posições para cobertura de margem, ampliando desmesuradamente o risco de mercado e o risco de liquidez.
A expectativa de uma queda (ou elevação) muito abrupta e profunda dos preços dos ativos subjacentes geralmente dá origem a um forte desequilíbrio entre posições compradas e vendidas nos futuros, espreme a liquidez dos mercados, afugentando os bancos enquanto market makers, o que inviabiliza o seu papel “estabilizador”. A polarização de opiniões termina, em geral, determinando o desfecho antecipado pela maioria dos agentes. Na ausência de um socorro tempestivo de um emprestador de última instância a propagação do pânico leva inexoravelmente ao credit crunch, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária.
As autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o processo de contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. É necessário que os bancos centrais estejam dispostos, nestas circunstâncias, a prover abundante liquidez para os mercados em crise. O trauma num destes mercados tem enorme potencial de contaminação, provocando, em geral, fugas para moedas e ativos considerados de melhor reputação e qualidade. A crise de liquidez rebate pesadamente sobre a solvência dos emissores de ativos de maior risco. Os bancos, financiadores “finais” de posições nestes ativos depreciados, terão que digerir as perdas e, para tanto, vão tentar recompor seus níveis de capitalização e de liquidez, restringindo a oferta de crédito para outros agentes, inclusive aqueles mais bem situados no ranking de avaliação de riscos. Exemplo disso foi a espetacular subida de 400 a 1.000 pontos básicos, nos spreads cobrados às empresas americanas, após os episódios da Rússia, do ataque ao Brasil e da quebra do LTCM.
No caso do hedge fund americano – que havia apostado – com elevada alavancagem – numa convergência de preços entre papéis de países emergentes e os títulos do Tesouro americano – foi pronta a intervenção do Federal Reserve. A atuação do Fed buscou evitar que uma situação marcada pela emergência de risco sistêmico culminasse na a eclosão de uma crise sistêmica. Isto fatalmente ocorreria, caso os administradores do LCTM tivessem que liquidar suas posições – tambem alavancadas – em outros mercados, para cobrir as chamadas de margem exigidas pela crescente divergência entre a evolução antecipada dos preços e aquela efetivamente observada.