Desde seu papel na obra de Adam Smith – que dava aulas de retórica antes de se voltar a economia – passando por sua importância no trabalho de Keynes e na revolução keynesiana, parece bastante difícil entender a superação de controvérsias na História do Pensamento Econômico[1] sem o apoio desta chamada arte. Como bem diz Keynes em uma de suas célebres passagens, “ In economics you cannot convict your opponent of error – you can only convince him of it. And, even if you are right, you cannot convince him, if there is a defect in your powers of persuasion and exposition or if his head is already so filled with contrary notions that he cannot catch the clues to your thought which you are trying to throw at him. “ (Keynes 1973, p470)
Dentro desse programa de pesquisa, encontramos várias análises que destacam o papel da retórica na evolução de idéias econômicas. Bianchi e Salviano Jr. (1996), por exemplo, procuram demonstrar como a utilização desta por Raul Prebisch jogou papel fundamental na aceitação de suas idéias no campo. Antonio Maria da Silveira (1996), por sua vez, tem presente em seu texto “A sedição da escolha pública” – mesmo que de forma subreptícia – a importância da retórica no sucesso recente da escola da Public Choice – principalmente nos trabalhos de Buchanan. Fernández (2000) analisa como esta contribuiu para o progresso da teoria dos custos de transação de Oliver Williamson.
De grande interesse também é um dos trabalhos de Donald McCloskey, The Rethoric of Economics 1998, que faz uma análise da obra “ Railroads and American Economic Growth “ de Robert Fogel. O autor mostra como Fogel, também laureado com o Nobel em 1993, utiliza-se de várias técnicas de persuasão para convencer seu público a respeito de suas idéias. Enfim, poderíamos seguir citando exemplos que ajudariam a corroborar a importância da retórica na economia , nos valendo, entre outros, de Coase, Muth e Paul Samuelson[2]. Evidentemente não há aqui espaço, nem é de nosso interesse principal, esse tipo de desenvolvimento analítico. O tema do papel da retórica no progresso da ciência econômica é controverso[3] e, no que segue, tentaremos, apenas, clarificar um pouco as posições existentes no campo da metodologia para podermos situar nossa análise.
Para os assim chamados partidários da retórica, perguntar se o uso desta é nocivo ao conhecimento humano constitui-se num falso problema. Como bem aponta McCloskey, uma utilização preconceituosa desse termo esteriliza sua maior contribuição, a saber, a busca da “grande razão” através da conversa e do debate: “ Não minta, preste atenção, não burle; coopere; não grite; deixe que falem os demais; seja imparcial; explique-se quando perguntarem; não recorra a violência ou à conspiração em ajuda de suas idéias ”… são regras que fazem parte da Sprachethik como aponta o filósofo alemão Jurgen Habermas e lembra McCloskey (1996, p66). Para seus críticos, o recurso excessivo a técnicas de persuasão desvirtua a atividade científica na medida em que perde de vista a busca da verdade em detrimento do convencimento. Vejamos um pouco mais acerca desse debate.
Para julgarmos que alguém abusa de determinados expedientes de convencimento, mesmo que estes impliquem em abandono ou desprezo da verdade – como num caso de um bom advogado criminalista que liberta um assassino a partir de uma eficiente utilização da retórica[4] – devemos partir de algum conceito claro e definido de verdade, uma Verdade com V maiúsculo para usar os termos de Fernández (1996). E aqui reside o maior problema. Sabemos que em ciência a questão das verdades – “base empírica” ou “observação” – é problemática, principalmente pela dependência que estas têm nas teorias que formulamos (Lakatos 1965, pgs.129-130).
A partir da obra de Thomas Kuhn, “ A estrutura das revoluções científicas “ e de Imre Lakatos, no trabalho intitulado “ O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica “- ambos, de alguma forma, tributários da tradição popperiana – parece surgir um consenso, na área da metodologia científica, a respeito da inexistência de verdades absolutas ou com V maiúsculo. Tanto no conceito de programas de pesquisa lakatosiano, como na idéia kuhniana de paradigma, encontramos uma resposta possível e aceita para a definição do “ operador verdade “ em ciência. Ambos nos mostram que esta não pode ser provada – não existe conhecimento demonstrado para usar os termos de Popper ou de Lakatos[5] – e o que nos resta, portanto, é uma solução temporária, baseada em “ consensos “ na comunidade científica.[6]
Nesta esteira, mais especificamente a partir da idéia de paradigma, surge a retórica como defendida por McCloskey[7]. “ The idea that science is a way of talking, not a separate realm of Truth, has become common among students of science since Thomas Kuhn. “ (McCloskey 1998, p21). A obra “ Proofs and Refutations: The Logical of Mathematical Discovery “, de Imre Lakatos (1976) que, segundo McCloskey, trata do papel da retórica na matemática, parece também apontar no sentido da complementaridade de idéias entre esses dois autores. Enfim, na ausência dessa tal Verdade demonstrada e absoluta, devemos nos contentar com um acordo atingido a partir do consenso – através do debate e discussão – capaz de nos fornecer pelo menos uma verdade com v minúsculo. Ainda sobre este ponto é interessante notar o comentário de Arida (1996) acerca do sucesso do programa de pesquisa neoclássico em economia.
“ A reavaliação ainda que sumária das controvérsias que firmaram o programa neoclássico de pesquisa mostra que a resolução destas controvérsias foi determinada pela superioridade de procedimentos retóricos, de um lado, e pelo vigor comparativo dos programas por outro. Em nenhuma das controvérsias o recurso à evidência empírica desempenhou papel predominante. Inexistiam regras comuns de validação; a “ verdade “ do programa neoclássico estabeleceu-se por motivos estranhos ao modelo hard science “ (Arida 1996, p24) [grifos nossos]
A discussão da retórica em economia vincula-se também a movimentos na filosofia. Como nos mostra Bento Prado Jr., a problemática da retórica no campo da economia deve também ser entendida a partir de um movimento filosófico mais abrangente. Em suas palavras, “ [ estes textos ] percorrem esse novo terreno aberto pela crise do ideal da unified science ou do “ modernismo “, para usar a linguagem de McCloskey. Os limites desse novo terreno são bem definidos: crítica do positivismo, mas a partir de pontos de vista diferentes. Tais pontos são o neopragmatismo de Rorty, a teoria crítica na sua versão habermasiana, a integração ricoeuriana dos instrumentos da filosofia analítica, da fenomenologia e da hermenêutica, a epistemologia kuhniana, com suas idéias de revolução científica e de mudança de paradigma. É dentro desse campo que ganha pertinência a questão retórica da economia…” (Bento Prado Jr. 1996, p8)
Assim, para uma abordagem “ otimista “, a conversa, a discussão, o debate, enfim, a boa retórica, constitui-se num possível caminho de avanço do conhecimento. Boa conversa significa boa ciência (McCloskey 1996, p69). A retórica é, portanto, entendida aqui do ponto de vista construtivo[8], jogando papel importante na busca da verdade.
De outro lado, argumentarão seus oponentes, a retórica busca convencer e persuadir e não a verdade. Nesse sentido, boas teorias serão aquelas convincentes e, portanto, capazes de converter a maioria dos cientistas. Nas palavras de Paulani (1996) ao criticar as idéias de McCloskey, “ … pois a função das teorias e hipóteses científicas não é a busca da quinta roda inoperante [a verdade]; a causa de sua existência é serem persuasivas, interessantes, razoáveis, terem apelo. Assim, boa teoria é a teoria que convence mais, que persuade a platéia e os interlocutores. Tornando-nos todos vítimas, assim, dos magos da retórica, por piores que possam ser suas intenções. “(Paulani 1996, p109)
Ou ainda, como nos mostram Aldrighi e Salviano Jr. (1996), muitas das técnicas retóricas podem, por vezes, ser completamente nocivas à boa ética científica, “ … a mera consulta a um manual de retórica permite concluir que há muitas figuras retóricas cujo uso conflita com os ideias de clareza e honestidade que McCloskey subscreve. “ (Aldrighi e Salviano Jr.1996, p90)
Sabemos que originalmente a retórica foi criada para convencer. Rego (1996) nos mostra a origem dessa discussão entre Górgias, Sócrates e Platão. Os assim chamados críticos do papel da retórica para o avanço da ciência parecem entender a mesma do ponto de vista de Górgias, em que o “ agonismo da retórica deve ser entendido como uma arte de se ter sucesso a qualquer preço, inclusive através do imbroglio” (Rego 1996, p135). A busca da verdade cede lugar à busca da persuasão e a atividade científica cai por terra. O debate acerca da contribuição da retórica para o avanço científico não é nada trivial. Identificamos acima suas duas dimensões. Uma primeira positiva, que destaca seu importante papel exploratório e analítico de idéias[9], que contribui para o aumento da “ razoabilidade “ científica através da discussão, opondo-se claramente “ a idéia de que retórica é o oposto da lógica “(Fernández 2000, p3), significando retórica, portanto, “ pensamento explorado pela conversação “.[10]
Uma segunda, onde a retórica é vista com destaque para sua conotação negativa, “ um engano verbal, como na “ retórica vazia “, ou em “ mera retórica “(McCloskey 1996, p70). Privilegia-se assim seu aspecto agonístico, onde seus praticantes visariam a “ participar de um campeonato na arte de persuadir “(Paulani 1996, p109). Essa controvérsia não é facilmente solucionável. Como bem apontam Bianchi e Salviano Jr. (1996), no limite parece bastante difícil conciliar as posições de discurso persuasivo de um lado e conversa civilizada de outro. “ Querer convencer e querer dizer a verdade não são incompatíveis, mas também não são substitutos. “ (Bianchi e Salviano Jr. 1996, p175).
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[1] O texto de Arida (1983) é bastante esclarecedor neste sentido.
[2] Todos analisados por McCloskey
[3] Ver a esse respeito Fernández (1996), pg.151
[4] Sobre essa questão ver a discussão de Fernández(1996) pg.147
[5] Ibidem pg.110
[6] Existem controvérsias a respeito da melhor utilização das idéias de Kuhn e/ou Lakatos em Economia, seguimos aqui Rego (1990) e não Blaug, partindo-se do pressuposto de que, a rigor, não existem grandes diferenças entre a abordagem kuhniana e lakatosiana.
[7] A relação Kuhn – McCloskey está também sugerida em Rego (1990) pg.160 e Dib (2001) pg.5
[8] Ver a esse respeito a discussão em Rego (1996) pg.135 sobre a retórica de Aristóteles. Ainda sobre esse tema e também sobre a chamada Nova Retórica ver McCloskey (1996) pg.71
[9] Ver o projeto de Aristóteles explicitado em Rego (1996) pg.135 e pg.136
[10] Aldrighi e Salviano Jr. (1996) pg.83 com referência a McCloskey (1983) pg. 512
[11] Para uma discussão da construção de vários “ ethos “ em alguns autores ver “ The Rethorics of Economics “ pg.7
[12] Ver a esse respeito o texto de Bianchi e Salviano (1996)
[13] Para que o leitor desfrute do texto e acredite em suas idéias é preciso que ele aceite fazer o papel do “ leitor implícito “. Ver “ The Rethoric of Economics “ pg.84
[14] Ver Lanham (1991) pg.2 e pg.194
[15] Voltamos aqui à importância da relação debatedor – platéia já explicitado acima.