*texto de Luiz Gonzaga Belluzzo
As crises financeiras do capitalismo, desde a sua versão mercantil dos séculos XVII e XVIII até os terremotos do Terceiro Milênio, sempre envolveram o crédito fácil e a explosão de preços de um ativo – real ou financeiro – escolhido como sedutor dos cobiçosos e servidores do enriquecimento ilimitado. O filósofo-especulador George Soros, em recente depoimento ao Congresso americano, desautorizou as teorias que tratam de analisar os mercados financeiros a partir dos pressupostos da “eficiência”, ou seja, do comportamento racional dos investidores que avaliam a formação de preços dos ativos a partir dos “fundamentos”. Soros sustenta que “percepções equivocadas podem levar à formação de bolhas… e tais movimentos reforçam as tendências prevalecentes até o momento em que a distância entre a realidade e a percepção da realidade pelo mercado se torna insustentável”. No livro Manias, Panics and Crashes o economista Charles Kindleberger faz uma autópsia dos processos maníacos que, inevitavelmente, terminam no colapso de preços e nas crises de crédito. Assim foi em Amsterdã, no episódio da Tulipomania, um antepassado modesto dos grandes crashes dos séculos XX e XXI. Entre 1634 e 1637, os investidores holandeses, muitos de classe média, especularam furiosamente com a possibilidade de negociar a preços cada vez mais elevados os bulbos de tulipa, que, ademais, tinham a vantagem de exigir muito pouco ou nada para a sua reprodução. Na base das expectativas exacerbadas a respeito da evolução do preço das tulipas estava o Banco de Amsterdã e sua capacidade de estender o crédito e suportar o avanço da especulação.
Na história das finanças é comum a imagem de investidores inconformados com os resultados da própria cupidez. Desde a Tulipomania de 1634, passando pelas crises cada vez mais frequentes do século XVIII (como a Bolha dos Mares do Sul, em 1720), e chegando aos desastres financeiros do século XXI, o que mais impressiona o observador é a semelhança entre episódios tão diferentes. Primeiro é a fantasia do enriquecimento rápido, sem causa, milagroso, fruto de alguma esperteza inata ou habilidade singular; segundo, a formação de um consenso sobre o ineditismo das circunstâncias que parecem justificar a valorização rápida dos papéis (sempre há uma “nova economia”); terceiro, o envolvimento dos bancos na especulação, fornecendo crédito abundante para alimentar a euforia: quarto, o avanço do endividamento dos investidores, disfarçado pelos valores cada vez mais inflados da riqueza financeira ou imobiliária: quinto, a “correção de preços”, decepção e quebradeira.
O mundo das finanças viveu uma relativa calmaria, nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Há quem sustente que a escassez de episódios críticos deve ser atribuída, em boa medida, à chamada “repressão financeira”. Esta incluía a prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos negociáveis (securities), a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juro e restrições ao livre movimento de capitais. A desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros e cambiais se iniciaram antes da ruptura do sistema de Bretton Woods e contribuíram para a sua derrocada. Desde meados dos anos 60, começaram a aparecer os primeiros sintomas de desorganização desse arranjo “virtuoso”. No que diz respeito aos sistemas monetários e financeiros, os fenômenos mais importantes, na etapa de dissolução do consenso keynesiano foram, sem dúvida: 1. A subida do patamar inflacionário, tornando insustentáveis os limites impostos às taxas de juro. 2. A criação do euromercado e das praças offshore, estimuladas pelo “excesso” de dólares produzido pelo déficit crescente do balanço de pagamentos dos Estados Unidos e, posteriormente, pela reciclagem dos petrodólares. 3. A substituição das taxas fixas de câmbio por um “regime” de taxas flutuantes, a partir de 1973. Os defensores das taxas flutuantes proclamavam perseguir um duplo objetivo: permitir realinhamento das taxas de câmbio e dar maior liberdade às políticas monetárias domésticas.
Já entre o fim dos anos 60 e o início dos 70, as tensões entre a regulamentação dos sistemas nacionais e o surgimento de um espaço “desregulamentado” de criação de empréstimos (e depósitos), num ambiente de inflação ascendente, haviam acarretado mudanças nas formas de concorrência bancária, provocando uma onda de inovações financeiras. A captura dos devedores do Terceiro Mundo é uma das dimensões importantes dessa primeira etapa de internacionalização do capital financeiro. Ela se inicia na segunda metade da década dos 60 e se intensifica depois do primeiro choque do petróleo e da introdução do regime de taxas de câmbio flutuantes, em 1973. A estagflação dos anos 70 foi marcada por fortes instabilidades cambiais e monetárias. A continuada desvalorização do dólar foi acompanhada por taxas de inflação de dois dígitos nos Estados Unidos, assim como na Inglaterra e na Itália. O bom comportamento dos preços na Alemanha e no Japão valorizou o marco e o iene e suscitou a redução dos haveres em dólar na composição das reservas internacionais.
A crise da dívida de 1982 – aquela que o sábio Walter Wriston, então presidente do Citi, garantia que não podia acontecer – foi deflagrada pela elevação dos juros, decidida por Paul Volker em 1979. O FMI e o governo Reagan salvaram os credores de maior porte. Deixaram a quebradeira para a periferia imprudente. Não conseguiram, no entanto, evitar, em seu próprio quintal, a falência do banco Continental Illinois e de mais 43 bancos americanos. Em 1986, as Saving and Loans, antes circunscritas às hipotecas, aproveitaram a desregulamentação para curtir amor em terra estranha, como o inesquecível Osmar Santos, um clássico da narração esportiva, qualificava a situação do jogador pilhado em impedimento. Em 1987, o Federal Reserve impediu a propagação do crash da Bolsa de Nova York com uma injeção generosa de liquidez. O program trading havia derramado nos mercados um caudal de ordens de venda, aparentemente desencadeadas por declarações infelizes sobre o curso do dólar pelo então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, o arrogante e inoportuno James Baker.
Na esteira da desvalorização da moeda americana, providência que se seguiu ao chamado Acordo do Louvre, o Japão engoliu a valorização do iene, a famosa endaka. Sob pressão de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira. Saboreou inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado de ações. A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações despencaram e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos irrecuperáveis. O Bank of Japan cortou os juros a zero. Mas as carteiras dos bancos estavam contaminadas por empréstimos podres, as empresas afogadas em capacidade ociosa, sem apetite pelo investimento, os consumidores mais temerosos do que prudentes. Sendo assim, os agentes cruciais para as decisões de demanda efetiva não tinham condições de responder às tentativas de restauração do crédito. O medo de emprestar somou-se à aversão pelo gasto. Os japoneses curtiram dez anos de estagnação. Logo depois, os mercados castigaram a libra valorizada com um ataque comandado pelo filósofo-especulador George Soros. A crise da libra de 1992 libertou a Inglaterra dos juros altos e da moeda apreciada. Não satisfeita, a turma da bufunfa, em 1993, cismou com a serpente monetária européia: castigou a lira italiana e a peseta espanhola. Logo em seguida, nos idos de 1994, Alan Greenspan surpreendeu o aquecido mercado global de bônus, com uma elevação da policy rate. Prejuízos para alguns desavisados à parte, o grosso das perdas atingiu, mais uma vez, um emergente descuidado: no fim de 1994, o mundo presenciou atônito a uma nova derrocada do peso mexicano. Ação pronta do FMI e do Tesouro salvou os bancos americanos carregados de Tesobonos (títulos do governo mexicano denominados em dólares). Já sob os auspícios do Nafta, o socorro de Tio Sam aos bancos de seu país impediu uma nova moratória no território abaixo do Rio Grande.
Depois, uma sequência trágica: a crise asiática iniciada na Tailândia, em 1997, contaminou os incautos, em 1998, o Brasil e a Rússia foram tragados no redemoinho da finança desregulada. Ainda em 1998, o hedge fund administrado pelos ganhadores do Prêmio Nobel Merton e Scholes entrou na rota da quebra. Os administradores apostaram na convergência entre os preços dos bônus do governo americano e papéis semelhantes do governo russo. Como o movimento esperado de preços não se verificou, os cientistas fogueteiros tiveram de botar grana no negócio à medida que os preços se afastavam da direção imaginada pelos jogadores. Para cumprir essa obrigação, os administradores foram forçados a “buscar liquidez” mediante a venda de ativos, provocando uma queda adicional de seus preços. O Fed teve de intervir, obrigando os bancos financiadores a sustentar a liquidez dos especuladores, com o propósito de evitar uma crise sistêmica. A euforia com as ações da nova economia e da dotcom vai à breca em 2000, mas o maníaco soprador de bolhas, Alan Greenspan, baixa rapidamente o juro básico. Com isso, dá curso à super-bolha de ativos, agora sob o patrocínio dos empréstimos hipotecários e da sanha dos consumidores. Joga às alturas os preços das residências.
Ao mesmo tempo, na periferia, o currency board do Doutor Cavallo entra em colapso. No fim de 2001, afetado pela desvalorização brasileira de 1999, a aventura da conversibilidade com taxa de câmbio fixa – apimentada com permissão de depósitos em moeda estrangeira – terminou na tragicomédia do “corralito”. Os titulares dos depósitos em moeda forânea correram aos bancos, desesperados, à procura de dólares que estavam, sim, escriturados em suas contas, mas escasseavam em espécie nos cofres. O Banco Central da Argentina, como é sabido, só podia emitir pesos desvalorizados. As alterações ocorridas ao longo das três últimas décadas na estrutura da riqueza capitalista e na operação dos mercados financeiros tornaram mais complexa a trajetória das economias e mais contraditória a gestão dos bancos centrais. O maior peso da riqueza financeira na riqueza total foi acompanhado pela concentração crescente da massa de ativos mobiliários sob controle “coletivista” dos Fundos Mútuos, Fundos de Pensão, e Fundos de Hedge. Os administradores desses fundos ganharam poder na definição de estratégias de utilização da “poupança” e do crédito. A abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas flutuantes e o crescimento dos instrumentos de hedge, diante da volatilidade das taxas de juro e câmbio. A “securitização” dos empréstimos bancários e o uso intenso dos derivativos ampliaram, para o bem e para o mal, o papel das flutuações de liquidez no desempenho dos mercados financeiros. As agências de classificação de risco passam a se envolver com os “classificados”, prestando serviços de aconselhamento e propaganda, ao mesmo tempo que pretendem exercer o papel de tribunais com legitimidade para julgar a qualidade dos ativos.
Na década dos 80, a ampliação dos mercados de capitais, ao estimular a colocação direta de papéis de dívida, capturou as empresas mais fortes e mais bem reputadas, deixando para os bancos a clientela de maior risco, empresas frágeis e consumidores tão insaciáveis quanto desinformados. Esses mercados, na visão de seus patrocinadores, teriam a virtude de combinar as vantagens da melhor circulação das informações, da redução dos custos de transação e da distribuição mais racional do risco. Nos anos 90, para enfrentar a parada dura, os bancos foram à luta: reivindicaram e conseguiram transformar-se num supermercado financeiro, terminando a separação das funções entre os bancos comerciais, de investimento e instituições encarregadas do crédito hipotecário, imposta pelo Glass-Steagall Act na crise bancária dos anos 30. Buscaram escapar das regras prudenciais, promovendo a securitização dos créditos. Tangidos pelas forças da concorrência, deram início a um intenso e ainda não encerrado processo de concentração bancária e de expansão internacional.
Os bancos passaram a “securitizar” recebíveis de todos os tipos, em especial os baseados em empréstimos hipotecários, dívidas de cartões de crédito, mensalidades escolares, em suma, todo tipo de cash flow com alguma possibilidade de ser pago pelos devedores finais. Sob o crescente predomínio dos Mercados da Riqueza, a incorporação do consumo individual à dinâmica do novo capitalismo tornou-se crucial para as perspectivas de crescimento. Não se trata apenas da completa sujeição das “necessidades” aos imperativos da mercantilização universal. No ciclo recente, o circuito crédito-riqueza-consumo teve como “fundamento” a valorização dos imóveis residenciais, avançou com a queda de preços das manufaturas produzidas pelos trabalhadores asiáticos e terminou na superalavancagem dos novos instrumentos financeiros. “Originados” na concessão de empréstimos hipotecários, os filhotes da criatividade dos mercados eram “carregados” pelos fundos e bancos-sombras, avaliados pelas agências de classificação de riscos e garantidos pelas seguradoras de crédito.
Ao fim e ao cabo, o circuito ríqueza-crédito-consumo “criava” poder de compra adicional para as famílias de baixa e média renda, ao mesmo tempo que as aprisionava no ciclo infernal do endividamento crescente. No topo da pirâmide da distribuição da riqueza e renda, os credores líquidos se apropriavam de frações cada vez mais gordas da valorização dos ativos reais e financeiros. No mundo comandado pela dinâmica dos mercados da riqueza, os vencedores e perdedores dividem-se em duas categorias sociais: os que, ao acumular capital fictício, gozam de “tempo livre” e do “consumo de luxo”; e os que se tornam dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência. Os bancos trataram de “empacotar” os créditos, os bons, os ruins e os péssimos, e remover a “mercadoria” dos balanços, mediante a criação de Special Investiment Vehicles. Os SIVs – os bancos-sombras ou quase bancos, criaturas dos bancos “autênticos” – não só cumpriam a função de liberar capital próprio das instituições para a garantia de novos empréstimos, como serviram para manter asseadas as carteiras “originárias”. Tais artimanhas contornavam as regras da Basiléia, que impõem o custo dos requerimentos de capital próprio para a cobertura de riscos.
Os bancos sombra emitiram commercial papers para financiar posições em ativos securitizados – os Asset-Backed Commercial Papers. Instrumentos de curto prazo emitidos para “carregar” posições em papéis mais longos, os commercial papers são especialmente sensíveis às mudanças nas condições de liquidez dos mercados financeiros. Sendo assim, os bancos estavam obrigados, nos momentos de estresse, a prover liquidez para manter suas criaturas à tona. O colapso de preços dos créditos subprime detonou os mercados de commercial papers e deixou os bancos em má situação. Assim funcionam os mercados da riqueza: a má avaliação do risco torna-se endêmica, sobretudo quando são longos os períodos em que predominam a baixa volatilidade e a inflação bem-comportada. Os problemas aparecem, inevitavelmente, quando o risco de inadimplência do devedor não foi bem apurado ou quando os mercados secundários que avaliam diariamente a riqueza mobiliária -títulos de dívida ou direitos de propriedade, como as ações – colocam em dúvida o valor desses ativos amparado no crédito emitido pelos bancos. As perspectivas de perdas e, no limite, da quebra e da falência obrigam os possuidores de riqueza a fazer caixa, vender o que há de melhor e de mais líquido no seu portfólio. Subitamente, os mercados de dívida e de direitos de propriedade, antes eufóricos, tornam-se ilíquidos. A queda dos preços afugenta os eventuais compradores dos ativos, impedindo a mão invisível de cumprir o seu papel.
Os episódios de euforia global e liquidez excessiva terminariam em crashes espetaculares não fossem as intervenções de última instância dos bancos centrais mais poderosos no centro do sistema monetário internacional. Torna-se crucial impedir a crise de pagamentos. Operando num regime de reservas fracionárias, os bancos comerciais desfrutam de uma condição peculiar em relação ao demais intermediários financeiros: a prerrogativa de criar moeda e, assim, multiplicar depósitos, isto é, passivos bancários que se convertem em meios de pagamento. Esses depósitos são, portanto, dinheiro e podem ser movimentados por seus titulares com o propósito de adquirir bens e serviços ou pagar compromissos. A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário constitui a infra-estrutura que facilita o clearing e a liquidação de operações entre os protagonistas da economia monetária. Dificuldades nessas instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, se transformam inevitavelmente em transtorno para o conjunto da economia. A ausência de socorro tempestivo oferecido por um emprestador de última instância leva inexoravelmente à contração do crédito, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária. As autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o processo de contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. É necessário que os bancos centrais estejam dispostos, nessas circunstâncias, a prover abundante liquidez para os mercados em crise. Os consumidores “empobrecidos” buscarão recompor a relação desejada riqueza/renda, devendo, para isso, aumentar a poupança corrente. Isso significa que o corte nos gastos de consumo não será modesto, atingindo particularmente os setores que se alimentaram da inflação de ativos e da expansão do crédito, ou seja, os imóveis e os bens duráveis. São exatamente esses setores os que experimentaram maior crescimento relativo na expansão recente.
O aumento do déficit público, do investimento das empresas ou uma contração muito rápida do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos poderia contrabalançar a redução no consumo. No caso das empresas, a relação dívida-capital próprio ficou estabilizada no ciclo recente, mas a queda do consumo vai certamente comprimir a rentabilidade, piorando o rating e desestimulando os gastos de investimento. Essa deterioração do desempenho das empresas não será bem recebida pelos investidores, o que, provavelmente, vai suscitar ulteriores desvalorizações de suas ações. Quanto ao déficit externo, a sua redução rápida (acompanhada da desvalorização do dólar), acarretará algum alento ao desempenho da economia. Isso, caso o resto do mundo, sobretudo a China, substitua o dinamismo das exportações pelo crescimento da demanda doméstica.
Câmbio Semi-Fixo, Vulnerabilidade e Risco Sistêmico : O Caso Brasileiro
Os bancos centrais nacionais são, na verdade, partícipes de um sistema universal e hierarquizado de pagamentos e de liquidez. Assim, por exemplo, os bancos centrais dos países de “moeda fraca”, expostos aos movimentos de capitais dificilmente são capazes de sustentar por muito tempo um regime de câmbio fixo ou semifixo. Em primeiro lugar, a sobrevalorização do câmbio suscita o rápido crescimento do déficit na balança comercial e em conta corrente. Nestas circunstâncias, os bancos centrais são obrigados a manter um volume muito elevado de reservas em moeda forte para prevenir ataques especulativos. Isso torna as taxas de juros prisioneiras da necessidade de atrair recursos externos para financiar o balanço de pagamentos, acarretando um constrangimento crucial à atuação dos bancos centrais no provimento de liquidez e no desempenho de sua função de emprestador de última instância. A política monetária tem que se submeter às variações das reservas, sob pena de entregar a economia nacional a uma severa crise de balanço de pagamentos, acompanhada tradicionalmente do colapso da paridade.
No início dos anos 90, o Brasil voltou a receber um intenso fluxo de capitais do exterior, estimulado pelas oportunidades de elevados ganhos de arbitragem e pelas expectativas de expressivos ganhos de capital prometidos por ativos baratos. Este movimento determinou uma forte valorização da taxa de câmbio, o que contribuiu decisivamente para o fim do regime de alta inflação. No entanto, à medida que a valorização da taxa nominal de câmbio quebrava o ímpeto inflacionário, a “apreciação” do câmbio em termos reais promovia a rápida ampliação do déficit comercial e em transações correntes, fazendo crescer as necessidades de financiamento do balanço de pagamentos. Depois das crises sucessivas, do México, da Ásia e da Rússia, os investidores mostraram maior relutância em continuar absorvendo ativos denominados na moeda do país, por conta da avaliação generalizada de que a trajetória do déficit de transações correntes e da dívida pública não eram sustentáveis. O crescimento da relação dívida/ PIB vinha sendo sustentada pelas operações de esterilização do impacto da expansão das reservas sobre a oferta monetária e pela manutenção de taxas de juros básicas excessivamente elevadas.
Em algum momento, as avaliações negativas sobre a evolução do regime cambial e monetário acabariam deflagrando as vendas em massa e a liquidação de posições na moeda sobrevalorizada. Estas antecipações negativas estavam claramente associadas a uma trajetória imprudente do déficit de transações correntes do balanço de pagamentos. Nestas situações, vinha ocorrendo uma fuga da moeda local em direção aos ativos financeiros denominados na moeda realmente forte que servia de referência, ou seja, o dólar. Instalou-se, assim, uma tendência irrecorrível à desvalorização da taxa de câmbio, envolvendo um duplo risco: o retorno das tensões inflacionárias e a aceleração da fuga de capitais, magnificando a possibilidade de perdas futuras para os aplicadores em moeda nacional. Este déficit de confiança foi agravado pela percepção de que o regime cambial e monetário anterior gerou endógenamente um desequilíbrio crescente entre o volume de reservas e a massa de ativos financeiros domésticos, inflados pela elevada taxa interna de juros. O problema é que esses ativos mantinham ainda mantêm a característica de quase-moedas e, apesar dos esforços das autoridades, não foi possível mudar essencialmente as relações entre o Banco Central e o sistema bancário, no que respeita ao giro e à liquidez dos títulos públicos.
Essa característica dos mercados de dívida pública fora acentuada depois da crise asiática e do colapso da Rússia. A crescente incerteza dos investidores quanto às flutuações bruscas nos preços, com risco de enormes prejuízos para os que se dispõe a carregar os títulos do governo, forçou os administradores da política monetária a aceitar progressivamente a substituição de papéis pré-fixados por pós – fixados. Isto foi feito simultaneamente à dolarização de uma outra fração importante da dívida pública interna, expediente destinado a oferecer proteção para os que mantêm uma posição passiva líquida em dólares. Como costuma ocorrer em situações como essa, em que predominam a incerteza e a desconfiança agudas, as expectativas tendem a se polarizar em torno da possibilidade de colapso cambial e as autoridades monetárias sentem-se obrigadas a assumir o risco de taxa de juros e o risco de câmbio.
É importante sublinhar que, na caminhada brasileira para a desvalorização, foi crucial o papel dos mercados de futuros. As autoridades em funções foram colocadas diante de uma escolha difícil. A intensa fuga de capitais recomendava a subida drástica dos juros de curto-prazo. Esta medida, além de acentuar o colapso de preços dos ativos, sobretudo das ações, iria agravar as condições de crédito e de solvência para o conjunto do sistema financeiro. Restavam a emissão de títulos atrelados à variação cambial e a intervenção nos mercados de futuros, vendendo contratos de dólares. Em ambos os casos havia inconvenientes de natureza fiscal e monetária que seriam, aliás, explicitados após a desvalorização. Mas, a intervenção nos mercados de futuros tornou possível o abastecimento de hedge cambial sem envolver a venda imediata de reservas para cobrir a demanda de dólares dos agentes envolvidos com transações em moeda estrangeira e saciar as expectativas dos que especulavam contra a moeda nacional. Buscavam hedge fundamentalmente aqueles que, apesar do risco iminente de colapso do regime cambial e monetário eram obrigados a sustentar em seus balanços um descompasso entre ativos denominados em reais e passivos em dólares. Este era o caso, por exemplo, das empresas que dependiam de importações, mas “faturavam” predominantemente no mercado interno, de bancos que sustentavam posições predominantemente compradas em “moeda fraca”, e dos agentes que – atraídos pelo câmbio valorizado e pelos diferencias de taxas de juros – estavam endividados em moeda estrangeira.
O Brasil, suscitou uma operação de “financiamento preventivo”, organizada no final de 1998 pelo FMI e pelos países do G-7. Primeiro, desde setembro, depois da moratória da Rússia, estava claro que as expectativas do mercado financeiro internacional antecipavam um “ataque” fulminante contra os ativos de maior risco, posições atraentes que tinham buscado com avidez desde o começo dos anos 90. Depois da crise asiática, a desconfiança em relação aos emergentes manifestou-se através de uma elevação dos spreads médios entre os papéis de maior risco e os títulos de igual prazo emitidos pelo Tesouro americano. Depois do “default” russo, a aversão ao risco assumiu formas agudas. Neste momento, as reservas brasileiras eram de US$ 70 bilhões. O Fundo Monetário exigiu o de sempre: ajuste fiscal, metas rigorosas para o crédito líquido doméstico, limites para o endividamento externo de curto prazo.
Curiosamente e – na visão de muitos – de forma incompatível com os supostos de seu próprio “modelo” de ajustamento, o Fundo concordou com a manutenção da política cambial vigente. O mercado ficou dividido: uma fração majoritária percebeu que esse monstrum vel prodigium da tecnocracia globalitária teria vida curta; outros remaram contra a maré, escorados no acordo com o Fundo e na forte participação das instituições do governo na oferta de hedge cambial, quer através de papéis dolarizados da dívida pública quer através da venda de dólares nos mercados de futuros. Apesar disso, intensificaram-se os ataques contra a cidadela enfraquecida do emergente em dificuldades. O governo brasileiro acabou desvalorizando o real, depois de uma perda de US$ 45 bilhões de reservas. Na posteridade da desvalorização de janeiro de 1999, intensificaram-se os boatos de um “calote” na dívida pública e as taxas de juros muito elevadas foram impotentes para conter a disparada do dólar. O pânico só foi controlado quando a nova equipe do Banco Central obteve autorização do FMI para aumentar os limites de intervenção no mercado cambial.