Ascensão e queda da Qualcomm: como a China cercou uma multinacional americana e virou o jogo no 5G?

*escrito por Felipe Augusto

Empresa americana logrou avançar sobre o mercado de telecomunicações chinês beneficiando-se do apoio dos EUA à entrada do país asiático na OMC. No entanto, seu predomínio gerou resistências. Após algumas tentativas frustradas no 3G e no 4G, a China jogou duro com a empresa americana e suas empresas assumiram a liderança no 5G. A Qualcomm é uma empresa americana de alta tecnologia, fundada em 1985, que produz bens e serviços de telecomunicações sem fio, com destaque para chips. Nesse mercado, o estabelecimento de padrões para as comunicações sem fio é crucial para o sucesso das empresas. Ou seja, a regulação tem impacto profundo na determinação dos vencedores e dos perdedores. No final dos anos 1980, o padrão analógico começava a dar lugar para o 2G, que permitia múltiplas chamadas em um mesmo espectro. Nesse contexto, a Qualcomm desenvolveu o padrão CDMA em 1989, mas acabou sendo tarde demais. O padrão TDMA já estava sendo adotado pela maior parte do mundo e seria incorporado no GSM, desenvolvido por várias empresas europeias.

Mesmo assim, como a China ainda tinha uma penetração muito baixa de aparelhos celulares, seu promissor mercado interno poderia ser a salvação para a Qualcomm. Porém, Pequim preferia o GSM porque os royalties eram menores. Como o GSM foi resultado de uma cooperação entre empresas europeias, ele seria menos restritivo em termos de direitos de propriedade intelectual. Em 1994, a China decidiu então pelo GSM. Porém, tudo mudou em 1999, na esteira das negociações para a entrada da China na OMC, que dependia da aceitação dos EUA. Inicialmente, o Ministro do Correios e das Comunicações chinês havia exigido três condições para aceitar o padrão da Qualcomm: (i) desenvolver um novo modelo de telefone móvel que pudesse ser executado nas redes CDMA e GSM, diminuindo o poder de barganha da Qualcomm; (ii) reduzir as taxas de royalties; e (iii) compartilhar o design do chip CDMA. Como a prioridade chinesa na época era a entrada na OMC, e diante da resistência dos americanos, os objetivos citados foram abandonados naquele momento. Em 2002, a estatal chinesa Unicom anunciou que prestaria serviços no padrão CDMA da Qualcomm para mais de 350 cidades. As receitas da Qualcomm na China explodiriam nos anos seguintes, mas começaram a gerar resistências na China, por causa do elevado valor dos royalties. Assim, o governo chinês percebeu que precisaria entrar forte no jogo ou então pagaria royaties para sempre.

O governo chinês solicitou então à Academia Chinesa de Tecnologia de Telecomunicações (CATT) que colaborasse com a Siemens da Alemanha no desenvolvimento de um novo padrão 3G que passaria a ser conhecido como TD-SCDMA. Quando, em 2009, a China anunciou a transição do 2G para o 3G, o governo promoveu a fusão das empresas de telecomunicações chinesas, passando de 6 para 3 grandes empresas estatais (que predominam até hoje): China Mobile, China Unicom e China Telecom. A cada uma dessas campeãs nacionais foi concedido em padrão diferente de 3G: WCDMA, que evoluiu do GSM, à China Unicom; CDMA2000, que evoluiu do próprio cdmaOne da Qualcomm, à China Telecom, e o nativo TD-SCDMA à China Mobile.

Não deu certo. O TD-SCDMA mostrou-se muito menos desenvolvido do que os padrões 3G WCDMA e CDMA2000, que provaram ser comercialmente viáveis ​​por anos. Os esforços da China para introduzir um padrão 3G doméstico terminaram em fracasso, mas seu apetite por reduzir a dependência de tecnologias estrangeiras permaneceu forte. Afinal, boa parte das tecnologias utilizadas nos outros dois padrões também pertenciam majoritariamente à empresa americana. Depois de mais de uma década de aprendizado, produtores chineses começaram a fabricar aparelhos celulares de alta qualidade e a avançar no mercado. Nesse contexto, o exercício de poder de mercado da Qualcomm via royalties começou a encontrar forte resistência. Então, em novembro de 2013, meses antes da emissão das licenças 4G, a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC) iniciou uma investigação para identificar se as práticas de royalties da Qualcomm violavam a Lei Antitruste chinesa, que entrou em vigor em 2007. Além da multa de US$ 975 milhões (a mais alta da história chinesa por condutas anticompetitivas até hoje), a Qualcomm concordou em reduzir suas taxas de royalties em dispositivos 3G para 5% e 3,5% para dispositivos 4G, usando uma base de royalties de 65% do preço final de venda, em oposição a 100%. Portanto, a empresa reduziu efetivamente suas taxas de royalties para 3,3% e 2,3%, respectivamente, em dispositivos 3G e 4G, inferiores às taxas cobradas em outros mercados estrangeiros. Era sinal de que os tempos haviam mudado.

Já na mudança para o 4G, duas empresas chinesas, Huawei e ZTE, começaram a incomodar. De acordo com a Jefferies Equity Analysis, a ZTE detinha 6% e a Huawei 1% de todas as patentes nos padrões 4G. Ainda assim, não eram poderosas o suficiente para fazerem frente à empresa americana. Porém, no 5G, com a ajuda do Estado chinês, a Huawei investiu pesadamente em P&D e apostou em uma tecnologia chamada “polar coding”. A concorrente dessa tecnologia é a tecnologia de verificação de paridade de baixa densidade (LDPC) da Qualcomm. Comparado à “polar coding”, o LDPC tinha um histórico muito maior de viabilidade comercial. A disputa se o LDPC ou o “polar coding” se tornaria o padrão 5G entrou em erupção em 14 de novembro de 2016, em Nevada, onde realizaram-se reuniões para a definição do padrão global. O debate foi intenso, com as empresas escolhendo lados. As empresas ocidentais, lideradas pela Qualcomm, apoiaram em grande parte a LDPC, enquanto vários fabricantes asiáticos favoreceram o “polar coding” da Huawei. Em entrevista ao Wall Street Journal, um especialista que estava na reunião afirmou: “os chineses decidiram que isso era importante. Essa foi uma das maiores batalhas políticas que já vimos.”

Eventualmente, os dois lados chegaram a um compromisso: o “polar coding” e o LDPC seriam adotados como parte do padrão global. Seria uma importante vitória para a Huawei e para a China. Após todos esses acontecimentos, a Qualcomm perdeu poder de barganha na China. Oito meses após a Qualcomm pagar a multa devida, a empresa concordou em formar uma joint venture com a Huawei e a Semiconductor Manufacturing International Corp. (SMIC) da China para desenvolver chips de 14nm. Em 2017 a Qualcomm decidiu ajudar a subsidiária da SMIC, a SJSemi, iniciando a qualificação do “wafer bumping”, uma técnica na fabricação de chips para produzir chips de 10 nm. Isso fez da SJSemi o primeiro fabricante de chips na China continental a entrar nos chips de 10nm. A Qualcomm afirmou que essa colaboração “mostra nosso compromisso em apoiar a atualização da indústria local de fabricação de semicondutores da China”. A relação da Qualcomm com a China passou a ser de cooperação com a estratégia nacional de desenvolvimento da indústria de semicondutores, crucial para a liderança política do país asiático. Os tempos de lucros extraordinários e domínio de mercado garantidos por patentes haviam acabado. Mais recentemente, contudo, no âmbito da guerra comercial e tecnológica dos EUA com a China, a Qualcomm foi proibida pelo governo americano de exportar tecnologias de 5G à Huawei e à SMIC. Os EUA decidiram que não querem mais aceitar que suas empresas contribuam, ativa ou passivamente, para o desenvolvimento de tecnologias estratégicas por parte do rival asiático.

Fontes: https://macropolo.org/analysis/from-windfalls-to-pitfalls-qualcomms-china-conundrum/ e https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-12-20/smic-sees-impact-on-advanced-chip-research-from-u-s-blacklist

https://www.ft.com/content/223c3d30-9091-11e8-b639-7680cedcc421

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