Por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria, professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)
Interessante artigo de Alexander Busch, publicado na DW Brasil, no dia 15 de outubro, questionou o que seria do Brasil caso o país exportasse apenas matérias-primas. De acordo com o autor, “a desindustrialização crescente causa profundas mudanças negativas na sociedade, como menos empregos e pesquisa”. Matérias-primas constituíram quase 70% das exportações brasileiras entre janeiro e setembro de 2021. Sobre o problema da dependência de matérias-primas, ele afirmou que elas criam “relativamente poucos empregos”. Do ponto de vista histórico-estrutural, Busch foi enfático ao afirmar que “a Europa, os EUA e, por último, a Ásia foram sociedades que começaram como produtoras de matérias-primas, mas se tornaram sociedades de classe média graças à própria industrialização”. Ele finalizou dizendo que “no Brasil, no momento a impressão é que o processo transcorre exatamente na direção inversa”. A desindustrialização é precoce no Brasil e o subdesenvolvimento faz parte da sua formação nacional, assim como nos países da América Latina.
No clássico livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina” (1970), Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, apontam que “o perfil da estrutura nacional de dominação só se compreende quando se concebe os grupos exportadores – plantadores, mineradores e banqueiros – exercendo um papel vital de ligação entre a economia central e os setores agropecuários tradicionais”. As ambiguidades das instituições públicas nacionais na região derivam de estruturas historicamente formadas pela “expansão para fora”. Os grupos “modernizadores” tiveram origem no sistema econômico exportador, vinculados historicamente aos interesses oligárquicos regionais. Segundo Cardoso e Faletto, “o desenvolvimento da produção para a exportação em grande escala foi resultado direto da formação de enclaves” depois da formação dos Estados nacionais na virada do século XIX para o XX. Enclaves, por sua vez, coexistiram com setores econômicos controlados por oligarquias tradicionais. Os sociólogos destacaram dois tipos de enclaves históricos na América Latina: o mineiro e o agrícola. Do ponto de vista do mercado mundial, ressaltaram os autores, “as relações econômicas são estabelecidas no âmbito dos mercados centrais”. Eles destacaram ainda que, a partir da década de 1950, a América Latina viveu a penetração do capital estrangeiro nos processos produtivos de substituição de importações industriais e golpes civil-militares para “resolver impasses”.
O livro “A construção do Terceiro Mundo”, editado pela Paz e Terra, em 1998, de Joseph Love, traz a informação de que o próprio Raúl Prebisch reconhecia, em 1961, que “continua sendo um paradoxo que a industrialização, ao invés de ajudar a amortecer bastante o impacto interno das flutuações externas, esteja nos trazendo um novo e desconhecido tipo de vulnerabilidade externa”. A necessidade da importação de bens de capital e de insumos industriais se apresentava como uma forma de dependência externa. Desenvolvimento no centro e subdesenvolvimento na periferia, diria Celso Furtado na década de 1960, seriam, basicamente, as duas faces da economia capitalista global. Ainda segundo Joseph Love, no escritório da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), no Rio de Janeiro, Maria da Conceição Tavares “examinou o desempenho da economia brasileira na década de 1950 e inícios da de 1960, afirmando que a ISI [industrialização substitutiva de importações havia fracassado devido à falta de dinamismo do setor exportador, aliado ao fato de que essa industrialização não havia diminuído a necessidade de importar capital e combustíveis”. Conceição Tavares também apontou o problema do “teto do mercado interno”, fruto da concentração de renda e que determinava a estrutura da demanda.
Economias de enclave persistem ainda hoje na América Latina, estruturando relações assimétricas de poder, dependência externa e desigualdades sociais extremas nos países que compõem a região. Mais recentemente, grandes insatisfações sociais se manifestaram nas ruas de países da América Latina, antes da pandemia de Covid-19 estourar, e elas revelaram a permanência de espaços autoritários, o déficit de poder público democrático e a precariedade institucional na região, que possui um caráter estrutural regressivo nos sistemas tributários nacionais. O recente escândalo internacional dos Pandora Papers, sobre a presença de recursos financeiros de autoridades e empresários em paraísos fiscais, foi recebido com um silencioso constrangimento inicial pela imprensa tradicional e o campo liberal na região. Nesse sentido, destacamos o documento “Informe Latinobarómetro 2021”, da ONG chilena que investiga o desenvolvimento de democracias, economias e sociedades na América Latina. De acordo com o documento, “os latino-americanos não toleram mais governos que defendem interesses de poucos, a concentração de riqueza, a escassez de justiça, a fraqueza das garantias civis e políticas, bem como o atraso na construção de garantias sociais”. O descontentamento sobre como funciona a democracia é comum na região em um tempo no qual a pandemia desnudou o exercício de poder.
Segundo consta no documento, “o revés econômico causado pela pandemia não define a região, mas simplesmente acentua suas características”. O mal-estar anterior não se dissipou. Ele apenas reafirma a demanda social por uma vida melhor. Democracias frágeis são citadas no documento, em um trecho que destaca o Brasil. Quando são expostos números, tomamos conhecimento de que 49% dos latino-americanos apoiam a democracia e 13% o autoritarismo, enquanto 27% se mostram indiferentes. No Brasil, 40% apoiam a democracia em relação a outras formas de governo, sendo que a indiferença atinge 36% da população e o autoritarismo é apoiado por 11% explicitamente. Para o Latinobarómetro, a indiferença é explicada como uma parte substantiva da decepção pelo mau funcionamento da democracia nos países. A indiferença cresceu na América Latina entre 2010 e 2020 e é nela que os decepcionados com a democracia se refugiam, não necessariamente no autoritarismo. Conforme consta no documento, “a fragilidade das democracias latino-americanas sempre esteve presente desde as transições”.
A democracia na região é avaliada pela experiência de três décadas de desempenho das elites e a partir de um julgamento das deficiências sentidas pela população. Não por acaso, 70% dos latino-americanos se dizem insatisfeitos com a democracia. Apenas 25% estão satisfeitos. No Brasil, 21% estão satisfeitos e 25% consideram que se governa para o bem de todos. Entre os latino-americanos, 73% consideram que se governa para grupos poderosos em benefício próprio. No Brasil, 71% pensam assim. Em relação à distribuição justa de riquezas, 17% dos latino-americanos dizem que essa é a realidade regional. No Brasil, apenas 14% pensam dessa maneira. Quase 80% dos latino-americanos consideram injusta a distribuição de riquezas nos países da região. Em síntese, ponderou o Latinobarómetro, as alternâncias no poder que ocorreram na região se devem a essas duas reclamações: as ausências de dispersão de poder e riquezas em um quarto de século. Frustrações e traumas ocorreram.
Para o cientista político francês Alain Rouquié, em seu livro “A la sombra de las dictaduras”, editado pela Fondo de Cultura Económica, em 2011, as democracias na América Latina são herdeiras das ditaduras na região, quando não são suas prisioneiras. Sobre essas democracias, ponderou o cientista político, “os jogos de coerções que os autoritarismos imprimem à cultura política não as afetam menos do que os arranjos institucionais que foram instalados”. A permanência de espaços autoritários, o déficit de poder público democrático e a precariedade institucional são onipresentes na região. O risco do populismo, à direita ou à esquerda, integra o quadro de desigualdades sociais extremas e de grande concentração de rendas e patrimônios no topo. O caráter regressivo da tributação nos países da América Latina, suas desigualdades sociais extremas e a evasão fiscal são ressaltados por Rouquié. Suas estruturas sociais não igualitárias e hierárquicas não são favoráveis à efetiva prática democrática, apesar de certas formas de liberalismo fazerem parte da ideologia hegemônica de suas elites. O darwinismo social é bem conhecido no Brasil desde a República Velha (1889-1930), primário-exportadora, oligárquica e antissocial. As “modernizações” foram limitadas na América Latina, quando não se manifestaram de forma regressiva socialmente.
Paulo, gostaria de um comentário sobre o furo do teto. A impressão que tenho é que como as classes mais favorecidas não estão consumindo para impulsionar a economia, eleições de 2022 à parte, o governo finalmente chegou à conclusão de que só incentivando o consumo das classes pobres poderemos ter algum crescimento. Ainda que esse consumo se limite a alimentos. É por aí?
aqui: https://www.youtube.com/watch?v=dT-aLp3klc0&t=15s