Chutando a escada: como os países ricos ficaram ricos?

O divertido livro Chutando a Escada, estratégias de desenvolvimento numa perspectiva histórica, publicado em 2003 pelo brilhante economista e professor de Cambridge Ha-Joon Chang fornece uma excelente referência para quem se interessa por lições da história para entender o mundo contemporâneo. A partir de uma rica e detalhada análise do papel do governo nos processos mais bem sucedidos de industrialização, mostra como uma série de estratégias nacionalistas e protecionistas foi fundamental para alcançar o desenvolvimento econômico nos países hoje ricos. Os casos mais importantes analisados por Chang são a Inglaterra e os Estados Unidos, ambos considerados, equivocadamente segundo o autor, como exemplos de sucesso econômico promovido pelo liberalismo. Chang demonstra, por exemplo, como uma série de medidas protecionistas inglesas nos séculos XV e XVI contra a próspera indústria de tecidos nos países baixos, especialmente em Bruges e Ghent no que hoje é a Bélgica, foram fundamentais para o desenvolvimento ingles. Medidas como a proibição de exportação de lã bruta da Inglaterra para o continente e fortes restrições à entrada de tecidos produzidos nos países baixos teriam sido fundamentais para estimular as tecelagens inglesas. Como argumenta Chang, a indústria têxtil que seria depois a base da revolução industrial inglesa só foi capaz de suplantar a potência dos países baixos a partir de uma miríade de ações de proteção e estímulo industrial de diversas monarquias inglesas, especialmente de Henrique VII (1485-1509) e Elizabeth I (1558-1603), isto para não mencionar o mercantilismo ferrenho praticado pelo primeiro ministro Robert Walpole (1714-1727) durante o reinado de George I (1714-1727).

O caso americano também é curioso. Alexander Hamilton, o primeiro secretário do tesouro norte-americano (1789-1795), está entre um dos principais formuladores de medidas protecionistas que estimularam a instalação e desenvolvimento da indústria manufatureira norte-americana. Seu conhecido trabalho Reports of the Secretary of the treasury on the subject of manufactures (1791) contem muitas das idéias que seriam depois formalizadas por Friedrich List (1789-1846) no argumento da proteção a indústria infante presente em seu trabalho The National System of Political Economy (1841). O projeto dos Estados Unidos, especialmente dos estados do norte, se contrapunha frontalmente às recomendações do liberalismo inglês que, segundo alguns americanos, era produzido para exportação e não consumo interno. Um dos exemplos do fervor protecionista americano no século XIX encontra-se na Guerra Civil. Além da questão da escravidão, o outro estopim do conflito  foi o embate entre o protecionismo da União, que representava as indústrias do norte, e o liberalismo da Confederação, representando os interesses agrícolas dos sul. Abraham Lincoln teria sido eleito a partir do voto decisivo dos estados protecionistas, especialmente New Jersey e Pensilvânia. A vitória dos estados do norte na Guerra Civil transformou os Estados Unidos num dos mais assíduos praticantes da proteção à indústria infante até a primeira guerra mundial.

Numa passagem curiosa do livro, Chang comenta sobre a tentativa, em vão, de Thomas Jefferson de proibir a publicação dos Principles of Political Economy and Taxation de David Ricardo nos Estados Unidos já que, segundo analise de muitos americanos da época, era uma obra excessivamente liberal. De fato, segundo Adam Smith, a melhor estratégia de desenvolvimento para os Estados Unidos estaria no aproveitamento da agricultura, sua vantagem comparativa natural, e não em práticas protecionistas para o desenvolvimento da indústria! Chang analisa ainda outros exemplos. Destaca na Europa uma série de medidas de proteção à indústria nascente na França e Alemanha. O próprio trabalho de Friedrich List baseou-se muito na experiência americana. Antes de List ter escrito seu famoso tratado sobre o assunto, passou vários anos nos Estados Unidos estudando as práticas protecionistas americanas. No caso asiático, a assinatura dos chamados “Unequal Treaties” no século XIX, que segundo Chang se aproximam muito das regras atuais da OMC, impedia o uso de tarifas por parte das colônias, como na Índia, ou ainda nas chamadas semi-colônias inglesas como nos casos da China, Japão, Tailândia, entre outros. Ao tomar emprestada a expressão de Frederich List de “chutar a escada”, Chang chama a atenção para a postura dos países desenvolvidos de dificultar e até no limite impedir o desenvolvimento de países mais pobres que representam, obviamente, enorme potencial de competição para o mundo desenvolvido.

Depois de alcançar elevado grau de desenvolvimento, países que promoveram fortemente o protecionismo, passam a defender posturas mais liberais já que suas empresas encontram-se em posições muito fortes para competir no mercado mundial. Chutam a escada para evitar que outros subam! O fim das Corn Laws na Inglaterra são um belo exemplo de medidas liberalizantes que acabaram por proteger as indústrias inglesas já estabelecidas. Ao estimular a produção de cereais no continente, os ingleses tentavam evitar o desenvolvimento das indústrias européias, especialmente a francesa e alemã, praticando o chamado “imperialismo de livre comércio”. A importância das chamadas políticas de ITT, ou industrial, trade and technology policies nos termos de Chang, floresce, portanto, como uma das principais explicações do sucesso dos países hoje considerados ricos. Obviamente que o uso de políticas protecionistas para desenvolver a indústria nascente não garante o sucesso como também inúmeros casos históricos demonstraram. A indústria aérea na África do Sul e Indonésia são exemplos de fracasso. Bem como a lei da informática no Brasil dos anos 80. Não basta fomentar uma industria. Ela precisa crescer, amadurecer e se tornar eficiente como se observou no Japao, Inglaterra e EUA.

O livro Chutando a Escada dá seqüência ao trabalho que Ha-Joon Chang vem desenvolvendo na Universidade de Cambridge desde os anos 80. Nessa linha de pesquisa seus livros de destaque são: The Political Economy of Industrial Policy (1994), Globalization, Economic Development and the Role of the State (2003) e Reclaiming Development, an alternative economic policy manual (2004), todos voltados para uma discussão crítica, tanto teórica como histórica, do papel do estado no processo de desenvolvimento econômico. Mais recentemente destacam-se os livros Maus Samaritanos e as 23 coisas que nao te contaram sobre o capitalismo. Chang utiliza a expressão de “Maus samaritanos” para se referir a grande maioria dos economistas, especialmente os excessivamente liberais, que acabam atrapalhando o desenvolvimento econômico por conta de suas idéias equivocadas em relação ao tema. Ao restringir o espaço de ação dos governos nacionais e proibir a utilização de políticas que outrora foram responsáveis pelo desenvolvimento de países como Estados Unidos, Inglaterra, Japão, etc…, os Maus Samaritanos acabam dificultando o processo de desenvolvimento econômico dos países pobres.

Trata-se de um livro voltado para um público mais amplo, nos moldes dos trabalhos do jornalista do New York Times Thomas Friedman “O mundo é plano” ou ainda o “O Lexus e a Oliveira”. O tema principal do livro é a globalização e a discussão sobre caminhos para o desenvolvimento econômico. O professor Chang escreve a partir de sua experiência na Coréia do Sul, o que dá ao livro um tom de autobiografia, especialmente no primeiro capítulo. Uma característica fundamental do texto é, além da tradicional competência técnica e clareza de idéias do autor, o bom humor e as piadas, que aliás são do próprio estilo de Chang. Numa época de intensa discussão na OMC e acalorado debate entre os economistas brasileiros sobre o desenvolvimentismo que por aqui se instala, nada melhor do que uma ampla análise da experiência histórica para algumas lições importantes. Os trabalhos de Ha-Joon Chang são, portanto, uma contribuição inestimável para o debate atual e leitura obrigatória para aqueles que estudam o tema do desenvolvimento econômico.

“mea culpa” do FMI em 2019:

FMI: “Based on theoretical, empirical, and historical evidence (in the tradition of Friedrich List, Alice Amsden, Robert Wade, James Fallows, and Ha-Joon Chang), we argue that the development paths of the Asian Miracles as well as Japan, Germany, and the U.S. before them, provide us with important clues to their success. and the U.S. before them, provide us with important clues to their success”

https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2019/03/26/The-Return-of-the-Policy-That-Shall-Not-Be-Named-Principles-of-Industrial-Policy-46710

18 thoughts on “Chutando a escada: como os países ricos ficaram ricos?”

  1. Olá Paulo Gala!

    Ótimo lembrar dessa antiga estratégia dos países desenvolvidos sobre o liberalismo. Já havia lido sobre isso há muito tempo, mas foi bom ler o bom artigo acima, para relembrar esse tema.

    Valeu! Parece que vc resumiu quase todo o livro do china!

    Estou sempre por aqui lendo os posts!

    Abração!
    E lembre-se:
    A bad day diving is better than a good day working! (eheheh)

  2. Excelente resumo de um livro esclarecedor!!

    Sugiro outro livro que trata desse mesmo ponto de vista:

    O ESTADO EMPREENDEDOR
    Este livro desmascara o mito do Estado como um paquiderme burocrático, sem mobilidade e ineficiente como gestor de negócios. Para muitos, o Estado deveria apenas corrigir as “falhas de mercado”, deixando a inovação e o empreendedorismo para o dinâmico setor privado. No entanto, dos produtos mais inovadores da Apple até as chamadas tecnologias “limpas”, passando pela indústria farmacêutica, Mariana Mazzucato mostra que o setor privado só aposta depois de o Estado empreendedor ter feito todos os investimentos mais ousados e de maiores riscos. Trata-se de um livro imprescindível para o entendimento e a discussão sobre os rumos do capitalismo contemporâneo. O Estado Empreendedor for recentemente indicado na Alemanha para o importante prêmio de livro do ano em finanças e economia, Wirtschaftsbuchpreis 2014. A Professora Mazzucato foi a primeira laureada com o prêmio SPERI Prize em economia política, concedido pela revista New Statesman a cada dois anos para o acadêmico que nos dois ou três anos precedentes tenha se destacado e sido bem-sucedido na disseminação para uma ampla audiência de ideias originais e críticas em economia política.

    http://msiainforma.org/economista-italiana-detona-mitos…/

      1. Muito bom! Excelente explicação do desenvolvimento economico dos Estados Unidos no século XIX. Mas o crescimento do Japão na era Meiji ocorreu devido a abertura do país ou houve protecionismo praticado pelo Japão?
        Pergunto ao professor Paulo Galo.

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