Como o dinheiro público fez as vacinas de RNA para COVID-19

*escrito com Isabella Lofrano

O nome “Moderna” é um acrônimo de “RNA modificado”. Agora parece inacreditável, mas, durante toda a década de 1990 ninguém apoiou a ideia da bioquímica búlgara hoje conhecida como a mãe das vacinas de RNA, Katalin Karikó. A ideia era fazer tratamentos e vacinas com base na molécula de RNA, exatamente a mesma usada pela Moderna e a BioNTech contra o coronavírus hoje. “Recebia uma carta de rejeição atrás da outra de instituições e empresas farmacêuticas quando lhes pedia dinheiro para desenvolver essa ideia”, explica a bioquímica de 65 anos nascida em Kisújszállás, a 100 quilômetros de Budapeste. Ela tem ainda uma carta da farmacêutica Merck rejeitando seu pedido de 10.000 dólares (52.000 reais) para financiar sua pesquisa. Agora, a Moderna e a BioNTech receberam centenas de milhões de euros de fundos públicos para desenvolver em tempo recorde suas vacinas de RNA mensageiro, a mesma ideia que Karikó e outro pequeno grupo de cientistas tentaram impulsionar há 30 anos sem sucesso.

Qual empresa tomaria o risco de investir numa vacina para qualquer vírus do Futuro? O governo americano tomou. Faria sentido para uma empresa privada investir milhões num projeto para desenvolver vacinas potenciais genéricas para vírus que possam surgir no futuro? Um cálculo de custo benefício privado sugere que não. E para um governo faria sentido? Quem suporta o prejuízo se o projeto não dá em nada? A sociedade, via tributação. O Estado é e sempre foi peça central no desenvolvimento tecnológico dos países hoje ricos. Exatamente por conta de sua ampla capacidade de mobilizar recursos via orçamento público, bancos de desenvolvimento e variadas formas de poupança forçada, o Estado consegue enfrentar os assombrosos riscos de insucesso envolvidos na pesquisa básica em inovação tecnológica no estado da arte em cada campo do saber. Uma vez superada a fase em que os investimentos geram apenas despesas e nenhum retorno financeiro, as inovações são então aproveitadas pelo setor privado que as transforma, por meio de desenvolvimentos acessórios e agregados, em bens ou serviços proprietários comercializáveis na economia.

Essa é parte importante da história das vacinas desenvolvidas para o Coronavirus. O programa do governo americano chamado plataforma P3 desenvolvido pela agência de pesquisas do pentágono, a DARPA, há uma década fez exatamente isso. Se não fossem as pesquisas da DARPA provavelmente não teríamos a vacina hoje. A primeira empresa nos Estados Unidos a entrar em ensaios clínicos com uma vacina para o vírus, a Moderna, foi financiada pela DARPA. Assim foi a segunda empresa, a Inovio, e o programa P3 já levou ao primeiro estudo mundial em humanos de um potencial tratamento com anticorpos covid-19. Se forem bem-sucedidos, os tratamentos com anticorpos oferecerão até três meses de imunidade contra covid-19. Ao contrário das vacinas, eles também podem ajudar a curar pessoas já infectadas com o vírus. A DARPA está longe de ser a única responsável pelo ritmo acelerado dessas vacinas. Outros países, incluindo a China também estão caminhando rapidamente em direção à cura. O mesmo ocorre com as empresas não afiliadas à DARPA. Ainda assim, a agência do Pentágono desempenhou um papel significativo no avanço da ciência que está tornando o ritmo rápido possível e estabelecendo um guia para os pesquisadores.

Nos anos após os ataques de 11 de setembro de 2001, uma série de incidentes com antrax, combinados com inteligência no exterior sobre potenciais ameaças biológicas, aumentaram os temores de bioterrorismo e levaram a DARPA a investir em maneiras mais rápidas de responder, incluindo tecnologia para acelerar o desenvolvimento de vacinas e detectar vírus emergentes. Um dos resultados desse movimento foi um programa chamado ADEPT, que investiu US $ 291 milhões de 2011 a 2019 em uma série de tecnologias que, juntas, poderiam reduzir significativamente os prazos para vacinas e anticorpos. As metas do programa eram a distribuição de vacinas e anticorpos por meio da implantação de seu código genético em células humanas. As vacinas tradicionais injetam o que é conhecido como um antígeno – geralmente um pedaço de vírus vivo ou desativado que é suficiente para provocar uma resposta protetora do sistema imunológico. Os antígenos são normalmente fabricados em um longo processo que envolve o crescimento de vírus vivos em ovos de galinha em biorreatores. O programa queria um corta caminho ao injetar um código genético que levasse o corpo humano a criar o antígeno em suas próprias células. O sistema imunológico reconheceria o antígeno nas células e lançaria uma resposta protetora. Em 2010 os cientistas testaram essa ideia e obtiveram algum resultado positivo. Se funcionasse o RNA poderia ser usado para desenvolver vacinas e anticorpos, encurtando os prazos de desenvolvimento de anos para dias antes dos testes clínicos, ele pensou. No futuro, os cientistas precisariam apenas do código genético de um vírus para criar uma vacina.

Na época muitos consideraram isso uma missão tola. Por ser efêmero o RNA é instável no meio ambiente e altamente suscetível à degradação. Não estava claro como colocá-lo em uma célula humana. Poucos queriam correr o risco de experimentar o RNA desse modo e seguir esse caminho. Hoje as vacinas de RNA, embora ainda experimentais, estão entre as candidatas que se movem mais rapidamente na corrida para impedir o covid-19. A Moderna foi a primeira empresa nos Estados Unidos a entrar nos testes de Fase 1 com uma vacina covid-1 usando RNA. A empresa injetou seu primeiro teste em um ser humano 66 dias após receber o código genético do vírus. Os testes da Fase 2 começaram em maio de 2020 e a Fase 3 começou em julho de 2020, tornando possível que a vacina pudesse estar disponível até o final do ano. Além da Moderna, duas outras empresas farmacêuticas – Pfizer e CureVac – estão buscando vacinas de RNA, assim como um pequeno laboratório no Imperial College em Londres e na Academia de Ciências Militares do Exército de Libertação do Povo na China. A CureVac também foi financiado pela DARPA. A Inovio Pharmaceuticals, financiada pela DARPA, entrou em testes de Fase 1 para sua vacina covid-19 entregue em Abril de 2020, tornando-se a segunda empresa a entrar em testes nos Estados Unidos. A empresa sediada na Pensilvânia, que iniciou os testes 80 dias após receber o código genético do vírus, pretende começar agora seus testes de Fase 2 e 3. A DARPA também financiou outras tecnologias para o desenvolvimento rápido de vacinas, incluindo empresas que fabricam vacinas por meio do cultivo de proteínas.

https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-12-27/a-mae-da-vacina-contra-a-covid-19-no-segundo-semestre-poderemos-provavelmente-voltar-a-vida-normal.html

https://www.washingtonpost.com/national-security/how-a-secretive-pentagon-agency-seeded-the-ground-for-a-rapid-coronavirus-cure/2020/07/30/ad1853c4-c778-11ea-a9d3-74640f25b953_story.html

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