*escrito por Felipe Augusto
A Tesla foi a primeira montadora estrangeira a ser autorizada a produzir na China controlando 100% da sua subsidiária. A tradicional estratégia chinesa era limitar em 50% o controle de multinacionais estrangeiras, oferecendo seu mercado interno em troca de capital, expertise e tecnologia. Não funcionou como se imaginava. A história da indústria automobilística chinesa é uma ótima aula sobre as razões que fazem ser tão difícil para um país pobre atingir alto nível de desenvolvimento, mas também sobre as oportunidades que surgem quando se tem ambição e visão. Primeiramente, não é à toa que a indústria automobilística é considerada estratégica em tantos países. A cadeia de fornecimento é longa (elevado número de partes e peças e de serviços terceirizados), cria muitos empregos com bons salários e incorpora e gera inovação e tecnologia.
A primeira vez que foi elaborada uma estratégia para o desenvolvimento da indústria automobilística na China foi em 1994. A meta era criar de três a quatro conglomerados automotivos com “competitividade internacional” até 2010, com marcas e tecnologia nacionais. Em 2009, a China havia se tornado a maior produtora e vendedora mundial de automóveis. Porém, as marcas nacionais, objetivo maior da estratégia, não decolaram. Em 2010, elas atingiram o auge da participação no mercado interno (46%), decaindo depois, e com exportações irrelevantes. O desafio não era trivial. O objetivo era alcançar as empresas tradicionais dos EUA e da Europa e as ascendentes da Ásia, desenvolvidas com muito apoio estatal. As barreiras à entrada eram imensas. As pioneiras tinham escala, experiência, tecnologia e marcas reconhecidas. Ademais, a preferência pelo importado é esperada em países pobres. Montadoras chinesas tinham que encarar o fato de que os consumidores têm impressões negativas em relação às marcas chinesas. A China fez uso da sua melhor cartada: o mercado interno. Multinacionais estrangeiras que quisessem se aproveitar do seu mercado deveriam formar joint-ventures (JVs) com empresas nacionais, em geral estatais, possuindo no máximo 50% das JVs, e transferir tecnologia e know-how. Por um lado, essas JVs facilitaram o acesso das empresas nacionais a tecnologias estrangeiras, preservando o capital nacional. Estratégia que foi mais bem-sucedida do que as adotadas pelo Brasil (montadoras 100% estrangeiras) e pelo México (maquiladoras). Porém, a participação mínima de 50% nas JVs parece ter sido insuficiente para incentivar a busca por autonomia tecnológica. As empresas nacionais podem ter se tornado complacentes já que recebiam todo o lucro das JVs. Por que investir tanto em marcas próprias?
Studwell, por exemplo, em seu excelente livro sobre a ascensão asiática, traz inúmeros relatos de como JVs automobilísticas dificultaram a criação de marcas e tecnologias nativas na região, como no caso da JV entre a japonesa Mitsubishi e a ascendente malaia Proton. A Mitsubishi vendia equipamentos obsoletos à JV, reduzia o ritmo do aumento de conteúdo local acordado, vendia partes e peças superafaturadas e construía carros que sabidamente não atingiriam padrões de qualidade exigidos para exportação. Por outro lado, a coreana Hyundai abandonou uma JV com a Ford, recusou um motor obsoleto lincenciado pela Mitsubishi, resistiu a pressões para se fundir com multinacionais estrangeiras durante as crises (como a GM em 1980) e diversificou as fontes das tecnologias mais cruciais. Tudo apoiado pelo Estado. O Plano de Longo Prazo para o setor, de 1973, foi elaborado pela burocracia coreana em contato próximo com a Hyundai. Subsídios dependiam de alto conteúdo local, de metas de exportação e da fabricação de modelos originais coreanos. Nada disso interessava às multinacionais. Por fim, o Estado ainda restringiu o número de modelos que poderiam ser produzidos e aumentou o tempo mínimo de vida de cada modelo antes da nova versão, eliminando a vantagem de escala e de escopo das multinacionais. O modelo chinês começou a sofrer do mesmo problema do modelo malaio: lucro relativamente fácil e baixos incentivos ou maiores entraves para o desenvolvimento de tecnologia nativa por parte das empresas nacionais. A SAIC, maior produtora chinesa, obtinha 90% do seu lucro de JVs.
Então a política não entregou tudo o que prometia. Fim da história? Não pra quem tem ambição e visão. Se a competição com as multinacionais é dura na indústria automobilística tradicional, o Estado chinês passou a apostar em uma mudança de paradigma antes que virasse tendência. No mesmo ano em que se tornou a maior produtora mundial de automóveis tradicionais (2009), a China adotou um ambicioso plano de desenvolvimento de veículos elétricos. Sua participação saiu de 5% para 53% das vendas mundiais de 2011 a 2019. A China tem hoje a mais avançada cadeia de suprimento para veículos elétricos, que exigem tecnologia e know-how muito distintos. O que eram barreiras à entrada que garantiam a liderança dos países tradicionais, agora se tornaram um passivo difícil de superar. Não à toa, políticas industriais “verdes” que buscam estimular a transição para veículos elétricos se tornaram comuns nos produtores tradicionais. Resta saber se não é tarde demais. A China saiu na frente e, tal qual as pioneiras do passado, não pretende ceder a liderança.
A Tesla virou parte da estratégia de sucesso do governo chinês. A Tesla usou seu status como produtora de carros mais valiosa e mais avançada do mundo, e se beneficiou da ameaça de isolamento comercial imposta pelos EUA à China, para conseguir o controle total sobre a subsidiária no país. A fábrica gigante em Shanghai foi construída em tempo recorde e inaugurada em 2020. A multinacional recebeu enormes subsídios do governo chinês. Além dos tradicionais empréstimos subsidiados de bancos estatais e das isenções fiscais, o governo construiu a infraestrutura básica e até mesmo se comprometeu a garantir a segurança dos trabalhadores durante a pandemia. O governo quer que a Tesla contribua para o aprimoramento tecnológico da cadeia de fornecimento para carros elétricos, que já é a mais completa do mundo. Além disso, a presença da Tesla traria concorrência para as centenas de outras produtoras do país. Tesla comecou a contribuir para a expansão da cadeia chinesa de fornecimento de baterias elétricas. A CATL já é líder no mercado mundial com 28%, fornecendo baterias para várias empresas nacionais e para alemãs como a Volkswagen e a Daimler. O apoio do governo chinês para a indústria, as empresas locais inovadoras e os consumidores que estão adotando novas tecnologias tornam a China o melhor mercado para veículos elétricos inteligentes.
O governo chinês tenta seguir o exemplo da Apple em smartphones, que ajudou a desenvolver uma cadeia de fornecimento chinesa, e que agora vem perdendo espaço para empresas nacionais como a Huawei, a Oppo e a Vivo. Aliás, empresas nacionais como a Xpeng e a Nio já se destacam. A NIO, a “Tesla chinesa”, estava à beira da falência quando o governo de Hefei comprou parte da empresa, que se comprometeu a contribuir para o desenvolvimento da cidade. Desde então, ela se aproximou da Tesla em vendas e virou a 4° marca de carros mais valiosa do mundo. Ou seja, a lua de mel entre a Tesla e a China dificilmente irá durar. A concorrência com as empresas nacionais deve se acentuar, e a China sempre deixou bem claro que seu objetivo é a autonomia tecnológica, especialmente diante do acirramento da disputa com os EUA. Coincidência ou não, a operação da Tesla na China apresenta sinais de autonomia cada vez maior em relação aos EUA. O chefe da divisão chinesa solicitou aos funcionários para se comunicarem somente em mandarim, e o contato direto com os EUA pode gerar reprimendas. Recentemente, uma agência de notícias chinesa enfatizou que o plano da Tesla de exportar carros de Shanghai para a Europa “iria contribuir para a nova estrutura de desenvolvimento da “circulação dual” da China”, uma referência direta à estratégia do Presidente Xi Jinping. Ao contrário da sua atitude desafiadora nos EUA, a Tesla parece estar adotando abordagem mais cooperativa na China.
https://www.nytimes.com/2009/04/02/business/global/02electric.html
https://www.zerohedge.com/markets/whats-real-story-tesla-china
https://www.zerohedge.com/markets/tesla-vehicles-banned-some-chinese-government-compounds
https://www.bloomberg.com/features/2019-bmw-electric-car-german-engines/