De 2010 até 2020 a economia americana operou com juros zeros e sem inflação, mesmo com enormes estímulos monetários após 2008. O mercado de trabalho com baixo desemprego não gerou pressões salariais relevantes, principalmente graças a subutilização da mão de obra e enfraquecimento dos sindicatos por lá. Esse período ficou conhecido como novo normal: uma situação de baixo crescimento, juros muito baixos e ausência de inflação. A pandemia mudou o cenário. A desestruturação das cadeias de comércio, os super-estimulos monetários e fiscais de governos mundo afora e o conflito Russia-Ucrania colocaram a inflação mundial acima de 5% ao ano. No momento os estímulos começam a ser recolhidos e todos os bancos centrais de países ricos estão subindo juros. Entraremos em recessão?
O período do novo normal americano de 2010 a 2020 foi caracterizado por juros muito baixos, crescimento lento e endividamento explosivo do setor privado; muitos autores chamam isso de uma estagnação por excesso de alavancagem ou uma “balance sheet stagnation”. Numa situação dessas o principal motor da economia passa a ser a minimização de dívidas. As empresas, bancos e famílias tentam reduzir suas dívidas a todo custo. Nos casos de estagnação do tipo “balance sheet” os juros caem para zero devido a tentativa do Banco Central de estimular a economia. Mesmo assim, não há grande demanda por crédito. Ninguém quer tomar mais dívida. Numa recessão tradicional de business cycle não há sobre-endividamento; as políticas monetária e fiscal funcionam normalmente. O BC reduz juros por um tempo, alguns dos excessos da fase expansiva do ciclo são corrigidos e, depois de alguns meses, a economia volta a operar normalmente.
Os dois grandes exemplos de “balance sheet stagnation” (ou depressão) no século XX são os EUA da década de 1930, seguindo o crash de 1929, e o Japão dos anos 1990, seguindo o estouro da bolha por lá. Em ambos os casos, a estagnação durou pelo menos uma década, com juros perto de zero e brutal subida do desemprego. No caso japonês, o estouro da bolha em 1990 causou uma depressão que durou 15 anos. Foi uma bolha dupla, no mercado acionário e imobiliário, causada pela mudança de política monetária e cambial em 1985. Graças à violenta pressão sofrida por conta da subvalorizarão de sua moeda desde os anos 1970, o Japão acabou sendo forçado a deixar o yen se apreciar a partir dos Acordos do Plaza em 1985. A pressão no Congresso americano estava muito intensa, com fortes ameaças a sobretaxação de produtos japoneses nos EUA, então, os japoneses cederam. A mudança de preços relativos fez com que o BC japonês respondesse com uma redução da taxa de juros para tentar estimular o crescimento via mercado interno em substituição ao motor exportador. De 1985 a 1990, o preço dos imóveis e das ações no Japão explodiu, alcançando níveis estratosféricos. A bolha explodiu em 1990.
A crise de 1929 nos EUA também foi causada por um estouro de bolha generalizado em imóveis e ações. Não foi só uma “simples bolha”. Foi um longo processo de alavancagem, que durou toda a década de 1920. Houve um choque de otimismo decorrente do final da Primeira Guerra Mundial que ajudou muito os EUA e a Europa. Qualquer semelhança com a crise de 2008 não é mera coincidência. A crise depois do crash foi grande e o PIB americano só retomou os níveis de 1928 em 1937, depois de uma queda de 30%. A estratégia de Herbert Hoover de deixar purgar logo depois de 1929 foi péssima. O desemprego foi a 25% e metade dos bancos americanos quebrou. Quem salvou os EUA, além da Segunda Guerra Mundial, foi o New Deal, um gasto público jamais visto em tempos de paz. Os juros foram derrubados no início daquela década e só voltaram para cima dos 4%, patamar dos anos de 1920, em 1953. E por que tudo isso é relevante? Para entender os próximos passos do Federal Reserve hoje temos que decifrar o que ocorre hoje nos EUA a luz de todas essas questões. Se os EUA estiverem mesmo num caso de “balance sheet stagnation” os juros param de subir já no início de 2023 perto dos 3% e podemos caminhar para cortes no final desse mesmo ano. Se o crescimento seguir robusto e os balanços privados se recuperarem as taxas podem ir a 4% e cortes ficariam para 2024.
Ideias chave:
- O período do novo normal americano de 2010 a 2020 foi caracterizado por juros muito baixos, crescimento lento e endividamento explosivo do setor privado;
- Nesses casos de estagnação do tipo “balance sheet” os juros caem para zero devido a tentativa do Banco Central de estimular a economia. Mesmo assim, não há grande demanda por crédito.
- Os dois grandes exemplos de “balance sheet stagnation” (ou depressão) no século XX são os EUA da década de 1930, seguindo o crash de 1929, e o Japão dos anos 1990, seguindo o estouro da bolha por lá
- Para entender os próximos passos do Federal Reserve em 2022 e 2023 temos que decifrar o que ocorre hoje nos EUA a luz de todas essas questões.
- Se os EUA estiverem mesmo num caso de “balance sheet stagnation” os juros param de subir já no início de 2023 perto dos 3% e podemos caminhar para cortes no final desse mesmo ano.