Dedução, indução e retrodução: Sherlock Holmes explica como a ciência funciona

Retroducao (ou abdução) e’ um conceito fundamental na etapa de criação das teorias que depois poderão ser organizadas (dedução) e testadas empiricamente (indução controlada). Uma das grandes contribuições do filosofo americano Charles S. Peirce à lógica encontra-se nos seus trabalhos sobre retroducao (ou abdução), numa definição simples: o ato de encontrar um traço ou característica num fenômeno (observacao empirica) e a partir daí sugerir uma hipótese explicativa (Peirce 1958). Mark Blaug caracteriza uma retroducao como um raciocínio distinto da indução e dedução. Cabe ao processo de retroducao a responsabilidade na criação das idéias na ciência. Por exemplo: na clássica discussão do “todos cisnes são brancos”: ao observar somente cisnes brancos não podemos afirmar que todos cisnes são brancos (indução). Mas e’ razoável construir uma teoria do tipo: existe algo no DNA dos cisnes que faz com que sejam brancos (retroducao). O movimento de “retroduzir” e’ diferente de generalizar a observação. Trata-se de construir uma teoria (hipótese) para explicar e ate mesmo prever as observações.  Para Peirce um raciocínio retrodutivo tem a seguinte estrutura:

i)The surprising fact C is observed.

ii)But if A were true, C would be a matter of course.

iii)Hence, there is a reason to suspect that A is true. (CP 5.189)

Um dos grandes exemplos de retroducao na história da ciência encontra-se no estudo dos movimentos planetários. O astrônomo Johannes Kepler observou que diversas órbitas dos planetas pareciam elípticas (http://www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/Extras/Keplers_laws.html). A partir daí criou uma de suas mais importantes teorias (hipóteses sobre movimentos planetários ou “leis de Kepler”) para explicar o movimento dos planetas (ver Hoover 1994, pg.301). Como destaca Peirce, o avanço da ciência depende da observação dos fatos por mentes equipadas com as idéias apropriadas. Ao observar regularidades no estudo de fenômenos o cientista faz uma espécie de julgamento intuitivo, que seria originário na formulação das hipóteses necessárias para o avanço da pesquisa.

É o típico raciocínio usado por Sherlock Holmes. Algo curioso é observado. Uma explicação é necessária para explicar essa surpresa ou anomalia. Constrói-se uma hipótese. Se tal hipótese fosse verdadeira, tal fato poderia ser explicado. Essa a estrutura de uma retroducao. Um outro exemplo: i)o gramado está molhado, ii)uma chuva ontem a noite poderia explicar o gramada molhado, iii)logo choveu ontem a noite possivelmente. Retroducao é então para Peirce o processo de construção das hipóteses científicas. Um processo permeado de insights e intuições, elementos não conscientes do cientista mas que são fundamentais para a construção de novas teorias, “o sopro dos Deuses”. Ou como observa Hands (2001: 224), ‘abduction is the stuff of all insight… it is a relatively loose notion of inference’. Ou ainda Chong Ho Yu (2005: 7) ‘the intuitive judgment made by an intellectual is different from that made by a high school student’.

A filosofia de Charles Sanders Peirce

Na filosofia de Peirce a verdade é, em última análise, uma crença não abalada por dúvida. Na base de seu pensamento está a relação crença e dúvida. A partir do momento em que alguma crença for afetada por dúvida, o indivíduo, ou a mente investigativa, sairá em busca de uma nova crença para suprimir a dúvida correspondente. Nesse movimento, a contradição criada pela dúvida deverá ser extinta e, só então, valendo-se do jargão econômico, o pesquisador “estará em equilíbrio”. O problema é, portanto, descobrir como as crenças são fixadas ou mantidas. Segundo Peirce existem quatro métodos de fixação de crenças: tenacidade, autoridade, a priori e o método da ciência. No primeiro as crenças são fixadas e evita-se por decisão própria a exposição a outras crenças que poderiam trazer dúvidas. No segundo, proíbe-se a adoção de outras crenças que não a oficial. No terceiro a crença é fixada segundo a opinião vigente em grupos ou comunidades estando recorrentemente sujeita a modismos. Para Peirce, todos esses métodos são intrinsecamente instáveis na medida em que a restrição externa que protege as crenças de dúvidas (decisão própria, lei ou opinião geral) pode ser abalada no convívio social, no confronto com as crenças de outros povos ou pessoas. Só seriam estáveis para um ermitão. (Ver Peirce 1958, pgs. 101-112).

Para Peirce, o método da ciência supera todos os outros já que ele se auto restringe ou regula. Parte já da hipótese implícita nos outros métodos de que “existem coisas reais, cujas características são inteiramente independentes de nossas opiniões sobre elas”. Como observa Hoover, “essas coisas reais estão sujeitas a leis que podem ser descobertas através de raciocínio e experiência, levando finalmente a uma conclusão Verdadeira. É importante notar que Peirce não abandona aqui sua negação de uma posição privilegiada por trás das crenças. Manter que existe uma verdade não significa clamar que alguém a possui. O método da ciência, na visão de Peirce, é um método que na totalidade do tempo poderia atingir a verdade, mas não fornece nenhuma garantia para o presente” (Hoover 1994, pg.298). Neste ponto, a metodologia da Peirce não difere muito da de Karl Popper, sendo curioso observar que muitos anos antes Peirce já antecipava as bases da metodologia popperiana. Popper enxerga a ciência como um mecanismo para resolução de problemas, se aproximando muito do modelo biológico de Darwin para explicar a evolução das teorias. Para Darwin, segundo Popper, uma espécie se depara com um problema. Surge, eventualmente, uma mutação que é capaz de resolver esse problema. A espécie se reproduz e persiste. Caso contrario a espécie é eliminada. Na visão de ciência de Popper, o problema de pesquisa vem sempre antes da observação. Parte-se de uma situação problemática, cria-se então uma teoria, hipótese ou conjectura para tentar resolver o problema e finalmente elimina-se a teoria se o problema não é resolvido a partir dela (método crítico).

O falibilismo popperiano aparece justamente aqui, na tentativa dos cientistas de refutar suas teorias. A atitude crítica rege o método cientifico e conduz a ciência. O critério de demarcação e a idéia de fasificabilidade têm portanto esse objetivo critico de por a teoria ou conjectura à prova. Sem entrar aqui nas inúmeras criticas sofridas por Popper em relação ao seu falsificacionismo “ingênuo” tecidas principalmente por Kuhn e Lakatos, é importante destacar o approach pragmático de Popper muitas vezes ignorado. Nesse ponto sua epistemologia se aproxima muito das idéias de Peirce. A noção de conjecturas e refutações parece análogo ao método científico de fixação das crenças de Peirce.

Estrutura logica da retroducao

No exemplo abaixo utilizado por Peirce, retirado da Stanford Encyclopedia of Philosophy (Burch 2001), podemos ver a lógica da retroducao:

1 ) (dedução) O silogismo AAA-1 (Barbara): todos M são P, todos S são M, portanto todos S são P é um exemplo de dedução. Agora façamos uma ligação desse silogismo com um problema de amostragem. Vamos supor que ser M significa pertencer a uma dada população, por exemplo uma bola numa população de bolas em alguma urna. Vamos supor que P seja uma característica de um membro dessa população, por exemplo ser vermelho. E por fim vamos supor que ser S significa ser membro de uma amostra aleatória retirada da população. Desse modo o silogismo ficaria: todas as bolas numa urna são vermelhas, todas as bolas de uma amostra aleatória particular são retiradas dessa urna, portanto todas as bolas dessa amostra particular são vermelhas.

2) (indução) Vejamos o que acontece se trocarmos a premissa principal pela conclusão. Todos S são P, todos S são M, logo todos M são P. Esse é um silogismo inválido AAA-3. Vamos considerar esse argumento em termos do problema de amostragem: todas as bolas numa amostra particular são vermelhas, todas as bolas dessa amostra aleatória particular são retiradas de uma urna, logo todas as bolas dessa urna são vermelhas. Encontramos assim um argumento que liga a amostra à população, para Peirce o principal significado da indução.

3) (retroducao) Por fim vejamos o que acontece se trocarmos a premissa menor pela conclusão: Todos M são P, todos S são P, logo todos S são M. Esse é também um silogismo inválido AAA-2. Vejamos esse resultado em termos de teoria de amostragem: Todas as bolas numa urna são vermelhas, todas as bolas de uma amostra aleatória particular são vermelhas, logo todas as bolas dessa amostra aleatória particular são retiradas dessa urna. O que temos aqui não é um argumento que vai da população para a amostra (dedução), nem da amostra para a população (indução), é um argumento provável, distinto de ambas, que Peirce nomeou retroducao. No caso, a fato das bolas serem vermelhas faz com que seja provável que elas pertençam a uma dada urna, mas não há nenhuma garantia a esse respeito. A construção de hipóteses a partir da observação de dados e regularidades é a base da ciência e do ponto de vista lógico esse movimento corresponde a uma retroducao. O salto retrodutivo é criativo, ou seja, produz hipóteses a partir das observações empíricas.

meu paper sobre o tema na revista Cognitio: https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitio/article/view/12455

Ortodoxia x Heterodoxia: qual o seu programa de pesquisa de economia preferido?

 

 

paper Rada &Taylor:https://www.researchgate.net/publication/265806447_Structuralist_Economics_Worldly_Philosophers_Models_and_Methodology

Referências Bibliográficas

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Sobre o trabalho de Kepler (http://www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/Extras/Keplers_laws.html):

*ver: https://www.researchgate.net/publication/265806447_Structuralist_Economics_Worldly_Philosophers_Models_and_Methodology

Willard Quine

Em um pequeno artigo datado de 1951, chamado “Dois dogmas do empirismo”, Quine lança os alicerces para os desenvolvimentos que viriam a ocorrer posteriormente tanto em relação ao pragmatismo quanto em relação ao próprio empirismo em uma versão mais próxima do naturalismo. Uma perspectiva holística em que se busca compreender a suposta relação entre teoria (esquema conceitual) e enunciados factuais (conteúdo empírico) a partir de uma visão crítica na qual se percebe a impossibilidade lógica de se testar os enunciados empíricos de forma completamente isolada em relação ao conjunto das crenças e dos significados completos das teorias científicas. Esta pressuposição ficaria depois conhecida na literatura como “tese de Duhem-Quine” e se tornaria um dos principais obstáculos para a defesa de um falsificacionismo ingênuo (como proposto originalmente por Popper). Ao mesmo tempo, foi também a compreensão das dificuldades apresentadas por Quine que levou muitos cientistas a desconfiarem da utilização de hipóteses ad-hoc , tal como se pode verificar no ponto de vista da maioria das perspectivas metodológicas empiricistas posteriores a Quine.

“a ciência toda é como um campo de força cujas condições limites são a experiência. Um conflito com a experiência na periferia ocasiona reajustamentos no interior do campo. Os valores verdade devem ser redistribuídos sobre nossas afirmações. A reavaliação de algumas afirmações envolve a reavaliação de outras, por causa de suas interconexões lógicas – sendo as leis lógicas por sua vez simplesmente elementos a mais do campo. Após reavaliar uma afirmação, nós devemos avaliar algumas outras, que podem ser afirmações logicamente conectadas à primeira ou podem ser as próprias conexões lógicas. Mas o campo total é tão indeterminado por suas condições de fronteira, a experiência, que existe muita latitude de escolha para qual afirmações reavaliar em face de uma única experiência contrária. Nenhuma experiência particular está ligada com afirmações particulares dentro do campo, exceto indiretamente através de considerações de equilíbrio afetando o campo como um todo” Quine 1951.

A conseqüência do modelo de ´ campo de força ´ de Quine é a rejeição do reducionismo: “qualquer afirmação pode ser mantida correta, aconteça o que for, se fizermos ajustes drásticos o bastante em algum outro lugar do sistema ´, e, ´… nenhuma afirmação é imune a revisão ´ (Quine 1951: 43). Em conjunto, essas conclusões são usualmente conhecidas como a tese Quine/Duhem, com referência a Pierre Duhem, o físico francês que advogava visões similares no início deste século. Uma outra consequência do modelo de Quine é que nenhuma afirmação é analiticamente verdadeira no sentido de estar aquém de rejeição. Na melhor da hipóteses, a forma analítica expressa uma vontade relativamente firme de manter uma afirmação mesmo diante da mais recalcitrante das experiências – uma questão de grau não de tipo. Quine acredita que teorias devam ser julgadas sob um padrão pragmático. Como um físico, Quine (1951:44) acredita ´…em objetos físicos e não em deuses de Homero ´e considera ´ … um erro científico não acreditar nisso ´. Apesar disso, tanto os deuses quantos os objetos físicos estão no mesmo ´ chão epistemológico ´. O padrão pragmático, acredita Quine, somente sugere que ´…o mito de objetos físicos é epistemologicamente superior na medida em que se provou mais eficaz do que outros mitos como aparato para trabalhar uma estrutura manejável dentro do fluxo da experiência ´ (Quine 1951.44).

3 thoughts on “Dedução, indução e retrodução: Sherlock Holmes explica como a ciência funciona”

  1. Acho que é importante ressaltar Thomas Kuhn e sua Estrutura das Revoluções Científicas. A ideia dos paradigmas e como ocorre suas quebras permitem entender melhor a Ciência e sua epistemologia.

  2. Sherlock é contra formulaçao de apressada de hipóteses por isto que acho Popper um idiota. Isto me faz lembrar na sua pergunta porque o corte de cabelo – erroneamente chamado de produto – é mais caro em certos lugares do que em outros . Todo mundo a exceção de mim responderam com algum teoria boba. um fato foi constado e para explica-lo ja vieram com teorias que anda explicam

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