Diabruras monetárias: dinheiro e riqueza em Keynes 

*texto de Luiz Gonzaga Belluzzo

“Aquele que ama o ouro dificilmente escapa do pecado.” Livro do Eclesiástico, versículo 31, 5.

Em sua obra magna, A Filosofia do Dinheiro, Georg Simmel ocupa-se das relações entre a atribuição de valor aos objetos distintos e o processo de igualação produzido pela abstração monetária. Para Simmel, na sociedade submetida ao processo de igualação das diferenças, o  dinheiro, mais do que qualquer outro objeto que possuímos, é libertador porque nos obedece sem reservas. Se o possuímos, o seu poder abstrato nos permite acesso a todos os bens, qualitativamente distintos entre si. A “vacuidade” do dinheiro dispensa qualquer conteúdo que ultrapasse a simples forma de possessão. Enquanto forma do valor e expressão geral da riqueza, o dinheiro nos liberta da tirania dos objetos singulares e, ao mesmo tempo, nos tiraniza com sua capacidade de adquirir qualquer objeto. “A impessoalidade e a universalidade de seu ser abstrato” disse Simmel na Filosofia do Dinheiro, “se colocam a serviço do egoísmo e da diferenciação. ” Simmel reproduz as considerações de Marx nos Grundrisse a respeito da “permutabilidade de todos os produtos, atividades e relações por um terceiro, por algo que pode ser, por sua vez, trocado indistintamente por tudo… a relação universal de utilidade e de usabilidade. A equiparação do heterogêneo, como Shakespeare bem define o dinheiro.”

Essa universalidade se realiza no dinheiro como riqueza potencial. Forma necessária do capital, o dinheiro não apenas intermedia transações entre valores já existentes. O capital-dinheiro é uma aposta na geração de riqueza futura, o que envolve o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e aquisição de meios de produção com o propósito de captura um valor monetário acima do que foi gasto. Os sistemas monetários modernos ultrapassaram as limitações impostas pela consubstanciação das funções monetárias em uma mercadoria particular (caso do ouro ou dos sistemas monetários que prevaleceram até o início do século XX). São fundados exclusivamente na confiança e não em automatismos relacionados a uma imaginária escassez do metal ou ao caráter “natural” da moeda- mercadoria. “E o lastro?”, perguntam os saudosos do padrão-ouro. Ah sim, a âncora, retrucam os contemporâneos. Diria Hegel que a moeda realiza o seu conceito: é uma instituição social ancorada nas areias movediças da confiança. Fiducia, Credere. Nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, dinheiro. A criação monetária até aqui depende exclusivamente de que os bancos sancionem a aposta privada. Em segunda instância, o Estado através do Banco Central referenda ou não o crédito a que os agentes julgam ter direito e que é concedido pelos bancos. Em uma forma desenvolvida, esse sistema não permite ao Estado executar diretamente a tarefa de integrar a moeda ao circuito mercantil, mas o leva a permanecer como garantidor último dos contratos mercantis privados que fixam seus termos e suas condições sob a forma monetária. Somente um instrumento dotado de reconhecimento diretamente social – garantido pelo Estado ou por um organismo que represente os interesses gerais dos estratos mercantis, e que esteja acima deles – é capaz de assegurar a validade das decisões e dos critérios de enriquecimento privado nas economias capitalistas.

Keynes expressou a condição acima de forma absolutamente clara. Em um sistema monetário baseado exclusivamente na confiança e no crédito, a moeda é aceita em suas funções – meio de circulação, padrão de preços e reserva de valor – como instrumento reconhecido socialmente. Isto significa que os agentes privados reconhecem que:

  1. a) o representante geral da riqueza, forma social do enriquecimento privado, não pode ser produzida diretamente pelos agentes individuais;
  2. b) nenhuma decisão arbitrária é capaz de substituir o dinheiro em suas funções por qualquer outra mercadoria ou contrato particular.

É muito importante a observação de Keynes a respeito das propriedades do dinheiro no capítulo xvii da Teoria Geral. O dinheiro tem elasticidade de produção e de substituição nulas ou irrelevantes. Isso significa que as empresas privadas não podem produzir dinheiro contratando mais trabalhadores e que nenhum outro ativo pode substituí-lo como forma geral da riqueza. Se for impossível produzir dinheiro, também não se poderá evitá-lo. Assim, Keynes pretende sublinhar que o ativo líquido, o dinheiro, não pode ser produzido privadamente, ainda que, em condições de crescimento estável da economia, os produtores privados tenham a ilusão necessária de que estão “produzindo dinheiro” com a venda de suas mercadorias e realização dos preços de seus ativos. Essa ilusão se desfaz quando o mercado se nega a confirmar as pretensões das mercadorias e ativos privados de se apresentarem como “dinheiros particulares”.

No capítulo I de A Treatise on Money, Keynes define a natureza de uma economia monetária em oposição a uma economia de troca. Na economia monetária, o dinheiro assume a condição de poder social que regula as transações entre os detentores privados da riqueza. O Estado se incumbe não só de “impor o dicionário, mas também se encarrega de escrevê-lo”. Isso significa que todas as mercadorias, ativos e títulos de dívida não podem circular sem antes ganharem a denominação imposta pelo dinheiro estatal em sua função primordial de moeda de conta. A despeito de seu caráter mercantil, o dinheiro não é uma mercadoria, mas uma instituição social. A possibilidade de produção ou substituição por qualquer centro de decisão privado introduziria uma ameaça de arbítrio na quantidade e no valor da moeda em benefício próprio, incompatível com a natureza das relações mercantis e com a acumulação privada de riqueza. Por outro lado, a unidade do padrão monetário (mantida à medida que a moeda legal cumpre simultaneamente suas três funções) oculta uma dualidade na gestão da moeda. Enquanto referência de cada produtor e centro privado de decisão, a gestão estatal tem que preservar a forma diretamente social da moeda. Esta gestão não pode se efetuar através de uma relação imediata do administrador da moeda (o Estado) com os produtores. Do contrário, introduzir-se-ia o mesmo risco do exercício arbitrário do poder de monetização que qualquer agente privado teria, caso fosse titular da prerrogativa de produzir ou substituir o dinheiro.

A dificuldade de apreensão do significado da gestão monetária e de seus limites reside no fato de que não há um padrão que possa ser preestabelecido ou considerado único. A não submissão dos atos de gestão monetária ante interesses particulares é impossível de ser assegurada a priori. Alguns economistas advogam o “Banco Central Independente” com o propósito de garantir a função “neutra” da moeda. Mas a conclusão é, no mínimo, apressada. O que a independência do Banco Central admite é a limitação do poder e do arbítrio no exercício da administração monetária. O erro consiste em atribuir a possibilidade de não-neutralidade e de arbítrio à gestão da moeda, quando, na verdade, a instabilidade é da natureza das economias monetárias. O caso mais geral é representado pela teoria monetarista que julga ser possível impor normas homogêneas de gestão monetária aos centros privados de decisão, como se a estabilidade monetária fosse uma decorrência direta e exclusiva da atuação do gestor. O monetarismo toma como um princípio o que é, na realidade, um resultado sujeito a condições: os agentes privados devem acreditar que a moeda legal não pode ser produzida ou substituída em suas funções. O postulado monetarista admite que não existem fatores de perturbação monetária originários das avaliações privadas. Implicitamente, supõe que uma decisão dos centros privados corresponde ao que foi antecipado, vale dizer, que as expectativas são sempre cumpridas e que não há incerteza. Desta forma, qualquer desequilíbrio monetário nasceria do descumprimento, pelo Estado, das regras de gestão.

A moeda e a confiança nela são fenômenos coletivos, sociais. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção, dos pagamentos, depende do grau de certeza na preservação forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente. A reprodução da sociedade fundada no enriquecimento privado depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores independentes. A sociabilidade dos produtores privados independentes, que produzem diretamente para a troca, começa a ser definida a partir numeração das mercadorias, inclusive da capacidade de trabalho, por uma medida comum de valor. A “sociedade”, ou seja, as relações constituídas pela referência a um padrão comum de valor, subordinam, do ponto de vista lógico, os desejos e preferências do indivíduo produtor. Os indivíduos “separados” devem se submeter   ao teste do reconhecimento social da “declaração” de valor de seu produto particular, mediante o veredicto anônimo do mercado. O dinheiro é, portanto, fundamento das relações entre os produtores independentes e, por outro lado, o único critério quantitativo admissível para a avaliação do enriquecimento privado. É a partir dessa dupla natureza, ou seja, da sua qualidade social como norma de socialização dos indivíduos privados e como critério e propósito quantitativo do enriquecimento que o dinheiro na sociedade mercantil-capitalista deve aparecer como a unidade das três funções, a saber, moeda de conta, meio de pagamento e reserva de valor. As duas primeiras executam de forma reiterada os ritos do reconhecimento social que acompanham o processo de socialização dos indivíduos privados e separados: ou seja, denominar cada mercadoria particular na forma geral do valor e submeter-se à aceitação dessa declaração pelo tribunal do mercado. A terceira função, a de reserva de valor, corresponde à impossível, mas obrigatória busca da certeza que acompanha a dimensão quantitativa da riqueza, inexoravelmente avaliada sob a forma monetária e abstrata.

Na teoria neoclássica, de inspiração walrasiana, a relação entre os proprietários privados de riqueza ou, se quiserem, entre os centros independentes de produção, é entendida a partir da idéia de que os interesses estão pré-reconciliados pela ação racional dos agentes. Isso supõe, portanto, que a socialização dos indivíduos privados, separados pela divisão social do trabalho, esteja garantida “a priori” e ancorada na racionalidade otimizadora, que ajusta os meios aos fins. Como já foi dito, nessa hipótese a respeito da socialização dos indivíduos privados, produtores de mercadorias, a moeda só é necessária formalmente, como moeda de conta e, mesmo assim, não desempenha qualquer papel relevante no processo de intercâmbio. A moeda é exógena, neutra e só determina o nível geral de preços, sem qualquer efeito sobre a economia “real”. As crises monetárias podem ser vistas como acontecimentos fortuitos ou anormais, em geral provocados, num regime de moeda fiduciária, pela ação desorganizadora do Estado. Na visão que considera o processo de socialização dos interesses privados na “economia de mercado”, capitalista, o dinheiro é a forma incontornável de institucionalização da rivalidade entre proprietários de riqueza. Sendo assim, é preciso reconhecer que as instituições que nascem desse conflito são, elas mesmas, instáveis e sujeitas ao colapso e a reorganizações periódicas. A ordem monetária disciplina e dá sentido à rivalidade que preside a busca do ganho privado. O comportamento “maximizador”, sem a moeda ou sem o constrangimento de suas normas, se transformaria numa guerra de todos contra todos. Mas, como a moeda, em si, é produto da luta encarniçada pela riqueza, também não está a salvo de rupturas periódicas que podem fazer a sociedade retornar a seu “estado primitivo”. Os agentes privados têm de acreditar nessa convenção precária e transformá-la numa âncora natural, num centro de gravitação de suas decisões, girando como a Terra em torno do Sol. O comportamento rotineiro, diz o professor Aglietta, torna possível à moeda cumprir simultaneamente suas funções de unidade de conta, meio de circulação e reserva de valor. Essa convenção deve ser suficientemente enraizada para permitir o movimento de preços relativos e a operação de forças da oferta e da demanda. Keynes definiu da seguinte maneira a riqueza em uma economia empresarial capitalista:

“Há uma multidão de ativos reais no mundo, os quais constituem a nossa riqueza de capital: construções, estoques de mercadorias, bens em processo de produção e de transporte e assim por diante. Os proprietários nominais destes ativos, no entanto, têm, frequentemente, tomado dinheiro emprestado para entrarem na posse deles. Em contrapartida, os verdadeiros possuidores da riqueza detêm direitos, não sobre os ativos reais, mas sobre o dinheiro. Uma considerável parte deste financiamento tem lugar através do sistema bancário que interpõe sua garantia ampla entre os depositantes que emprestam o dinheiro e os tomadores de dinheiro que buscam estes fundos para financiar a compra de ativos reais. A interposição deste véu monetário entre o ativo real e o possuidor da riqueza é a marca registrada do mundo moderno”.

São várias as questões importantes suscitadas pelo autor. A primeira, diz respeito à riqueza em sua dimensão produtiva, a dimensão relevante para o conjunto da sociedade porque é a única capaz de garantir a sua reprodução e sobrevivência. Essa riqueza possui ainda uma outra dimensão numa economia empresarial capitalista. Ela é necessariamente propriedade de alguém. A riqueza real deve ter uma “eficiência” em função de si mesma, que, por seu turno, corresponde à capacidade de reproduzir o seu próprio valor e ainda gerar um excedente. A capacidade de um ativo de reproduzir-se nos termos acima foi chamada por Keynes de eficácia marginal do capital. A riqueza, enquanto propriedade de alguém, só pode ser avaliada enquanto capacidade aquisitiva, ou seja, como um poder sobre os demais possuidores de riqueza, ou como “riqueza geral”. Neste sentido, a sua medição só pode ser feita em termos monetários ou melhor, em termos da taxa monetária de juros, ou ainda, do “preço” de se desprender agora do “poder geral” (dinheiro), para reavê-lo em data futura.

O que está em jogo aqui são os critérios de avaliação do estoque da riqueza real, em suas dimensões indissociáveis, a produtiva e a capitalista. Neste sentido, é possível imaginar, numa perspectiva keynesiana, alterações na taxa de juros e na eficácia marginal do capital, sem que isto tenha origem nas flutuações antes discutidas no fluxo corrente de investimento. A eficiência – medida da rentabilidade esperada – é do capital, ou seja, do estoque de ativos instrumentais enquanto riqueza. A taxa de juros é a taxa de conversão da riqueza, em suas várias formas, na riqueza líquida e não apenas a taxa fixada nos contratos de dívidas.

A avaliação capitalista da riqueza está, portanto, submetida a três medidas simultâneas:

  1. a) a rentabilidade esperada de um ativo de capital, definida a partir de sua capacidade de se reproduzir e ainda gerar um excedente, em termos de si mesmo;
  2. b) a avaliação em função de si mesma deve ser reconhecida socialmente; portanto, os rendimentos prováveis devem ser descontados à taxa de juros monetária que converte o “valor” deste ativo no dinheiro;
  3. c) a variação esperada do poder de compra dos ativos, admitidas flutuações no valor do dinheiro.

 

Estes três tipos de avaliação conformam o que Keynes definiu como o preço de demanda dos ativos. Ele estava particularmente interessado nas condições em que esta complexa avaliação da riqueza capitalista favoreceria:

  1. a) a colocação em operação de um dado estoque de riqueza produtiva, o que vai depender da avaliação do custo de uso e do preço da oferta;
  2. b) a decisão de incorporar ao estoque de capital existente um novo capital real, o que tem como condição específica que o preço da demanda do ativo em questão seja superior ao seu preço de oferta, isto é, ao custo de substituição dos ativos de capital da mesma classe.

Ou seja, Keynes estava interessado em determinar o sistema de preços dos ativos, a valorização das várias classes de riqueza e as condições que podem proporcionar variações de fluxos de nova riqueza real, de produção corrente e de emprego. A idéia de que Keynes supunha um baixo grau de substituição entre os ativos reais ou bônus de longo prazo e o dinheiro deve ser qualificada. No âmbito das expectativas convencionais a substituição ocorre naturalmente dentro do estoque de riqueza dos agentes, segundo o movimento dos portfólios, correspondendo à expectativa de relativa estabilidade em seus preços. Neste caso, a rentabilidade esperada pela posse das várias modalidades de riqueza pode ser igualada na margem. Keynes observa, porém, que este estado não pode ser garantido e que a acumulação privada da riqueza, a descoordenação e a anarquia das decisões podem despertar o temor no futuro, o que tenderá a provocar a concentração da preferência dos detentores de direitos sobre a riqueza em um único ativo, imaginariamente dotado da propriedade do valor absoluto, no sentido de uma capacidade aquisitiva e liberatória invariável agora e no futuro.

Os movimentos de “carteira”, na magnitude em que seriam requeridos para o capital real, estão bloqueados do ponto de vista social. A reação se dá na taxa de conversão da riqueza e nos preços de demanda dos ativos. Por outro lado, os ajustes marginais de carteira que, em uma situação semelhante à que antes descrevemos, podiam ser acomodados pela contração de novos fluxos (investimentos) e pela política de gasto e dívida do Estado, podem não bastar para neutralizar a ameaça que recai sobre o estoque da riqueza como um todo. Por estas razões, um rompimento do estado de confiança faz recair de uma forma absoluta sobre o dinheiro a esperança de preservação do valor da riqueza. Isto significa que os detentores de direitos sobre a riqueza são levados a supor a existência de uma medida e forma do enriquecimento que não esteja sujeita à contestação de ninguém, isto é, que seja socialmente reconhecida. Em qualquer economia em que o enriquecimento privado seja o critério da produção, a existência desta forma geral da riqueza, da renda e do produto é incontornável. A ruptura do estado de confiança, isto é, das convenções que vinham regendo um certo estado da economia, significa que os produtores privados não podem mais continuar tomando suas decisões – de produção e de investimento – sem levar em conta a incerteza radical em que estão mergulhados. Este é o estado que contrasta com o de “expectativas convencionais”, no qual os agentes se comportam como se a incerteza não existisse e como se o presente constituísse a melhor avaliação do futuro, seguida convencionalmente por todos. A aderência às “expectativas convencionais” constitui a própria base sobre a qual se dão os movimentos cíclicos ou a instabilidade do investimento, bem como seus desdobramentos do ponto de vista do endividamento, risco e acomodação dos portfólios. No quadro de rompimento do estado convencional de formação das expectativas, a questão que Keynes procurou levantar foi a da contradição entre o enriquecimento privado e a criação da nova riqueza para a sociedade (crescimento das inversões em capital real). Procurou demonstrar que a forma assumida pela crise tende a levar ao limite o impulso de enriquecimento privado, ao ponto de torná-lo anti-social devido à paralisia que impõe ao investimento, à renda e ao emprego.

A renda nacional é o fluxo criado pelo gasto de investimento e consumo, o próprio valor em movimento. A contraposição e simbiose entre essas formas do valor existe dentro do processo de produção: a busca pela competitividade e controle dos mercados apoia-se nos ganhos de produtividade do trabalho mediante a introdução de novas gerações de capital fixo, matérias-primas, peças e componentes em detrimento do número de trabalhadores (trabalho vivo), ao mesmo tempo que depende deste último para a produção e realização do valor. Os economistas Wynne Godley e Marc Lavoie partem da macroeconomia keynesiana para construir um modelo dinâmico no qual os “fluxos de fundos” promovem mudanças de composição nos estoques de riqueza. Ativos de uns são passivos de outro, ou seja, dívidas de uns são direitos de outros. As ações preferenciais são direitos que conferem prioridade aos rendimentos da empresa e as ações ordinárias conferem direitos a almejar o controle da propriedade. As famílias adquirem ao longo do tempo depósitos à vista, títulos do governo, ações e títulos de dívida emitidos pelos bancos ou diretamente nos mercados de capitais pelas empresas. São formas incontornáveis de acumular riqueza em uma economia monetária. As empresas emitem ações e se endividam junto aos bancos e demais intermediários financeiros para colher os fundos necessários para o financiamento de suas atividades – aquelas necessidades que excedem os lucros retidos. Os governos financiam os gastos emitindo títulos públicos, em estreita cooperação com os Bancos Centrais que regulam as condições de liquidez do mercado monetário mediante a recompra diária dos papéis elegíveis, quer do governo, quer do setor privado.

Os bancos comerciais e demais intermediários financeiros operam no espaço criado pela atuação garantidora dos Bancos Centrais e regulam a oferta de crédito para o setor empresarial não financeiro amparados na “criação” de passivos, depósitos à vista e, subsidiariamente, no endividamento junto ao público. As instituições financeiras não bancárias alavancam as posições ativas nos passivos contraídos nos mercados monetários atacadistas. A inter-relação entre os balanços – ativos e passivos – dos agentes relevantes, bancos, empresas, famílias, governo e setor externo, coloca as instituições financeiras na cúspide dos processos de decisão de gasto, formação da renda e gestão dos estoques de ativos gerados.  Os bancos e demais instituições financeiras exercem as prerrogativas de alavancar empréstimos para gerar depósitos, criar moeda e acomodar as reconfigurações nos direitos de propriedade (ações e títulos de dívida) que nascem e se transformam no processo de acumulação do valor e da riqueza. Simplificadamente, o movimento vai da criação de liquidez ‒ mediante a concessão de crédito novo para financiar os gastos de investimento e de consumo ‒ para a geração da renda, com a consequente acumulação de ativos e passivos nos balanços dos agentes. Godley e Lavoie, ao analisarem o fluxo de fundos e as mudanças na composição dos estoques entre o início e o término de cada período, introduzem o tempo histórico na dinâmica capitalista:

“Começamos cada período com uma configuração dos estoques que se altera por força dos novos fluxos gerados ao longo do período. O sistema não gera tendências ao equilíbrio, tampouco ao desequilíbrio, mas uma sequência de transformações nos balanços de bancos, empresas, governos, famílias e setor externo (Godley; Lavoie, 2007, p. 17)”.

A análise sequencial da dinâmica entre fluxos e estoques permite esclarecer os processos de “desequilíbrio” nas relações entre riqueza e renda e revela que a concentração da riqueza nas mãos dos proprietários- rentistas eleva a propensão marginal a poupar para cada nível de renda agregada, o que deprime o gasto privado, bem como aprofunda a desigualdade na distribuição de renda. O sistema financeiro em sentido amplo, inclui as bolsas de valores, os bancos de investimento e os mercados monetários atacadistas, onde famílias e empresas depositam seus saldos de curto prazo com direito a resgate automático. As instituições que compõem o chamado mercado financeiro também são responsáveis pela avaliação e negociação diária em mercados especializados do estoque de direitos de propriedade e de títulos de dívida nascidos dos fluxos anteriores de financiamento ao gasto em novos ativos reprodutivos ou acumulados a partir dos créditos destinado à compra de ativos já existentes.

Para examinar os efeitos patrimoniais deste processo de aumento do investimento, da renda, dos lucros e a manutenção das condições de liquidez e do crédito, consideremos   que em um determinado momento há um conjunto de empresas que está realizando o gasto de investimento e já exerceu a demanda de financiamento. Este conjunto de empresas está a realizar um “déficit” financiado pelos bancos. Ao mesmo tempo, um outro conjunto está colhendo os resultados de suas decisões anteriores de investimento, isto é, realizam um superávit, um “surplus”. É a obtenção deste superávit corrente que permite simultaneamente: a) servir às dívidas contraídas para o financiamento dos ativos formados no passado, e  b) acumular fundos líquidos dos quais se nutre o sistema bancário, enquanto intermediário financeiro, aproximando as unidade deficitárias das superavitárias. O prosseguimento do processo de aumento do investimento e do endividamento permite, portanto, servir a dívida passada. Isto significa que a economia deve gerar dívida no presente para que a dívida passada possa ser honrada. O investimento – necessariamente apoiado na expansão do crédito –   gera um rastro de dívidas.

A notória instabilidade do capitalismo decorre fundamentalmente do caráter problemático da decisão de adquirir novos bens de produção mediante estimativas a respeito de seu rendimento futuro. É uma aposta realizada em condições de incerteza. Como regra geral, as etapas de contração do emprego e da renda decorrem da queda do investimento agregado das empresas privadas. Se o investimento privado declina, não é recomendável que o investimento público também se retraia, porquanto a redução simultânea do gasto privado e do gasto público vai fatalmente afetar o emprego, o pagamento de salários e o pagamento de impostos. Diante da queda do faturamento, as empresas encolhem os gastos, demitem trabalhadores com o propósito de reduzir o seu próprio endividamento, mas do ponto de vista macroeconômico isto leva necessariamente ao aumento da dívida porque dificulta para   o conjunto da economia o pagamento do serviço da dívida passada. Ou seja, se cada unidade individualmente decide diminuir seu déficit corrente, o resultado poderá ser um agravamento da situação patrimonial do conjunto das empresas, bem como da capacidade de servir os compromissos correntes, diante da rigidez dos custos financeiros da dívida contratada no passado. Caso a economia enverede na senda da deflação, será inevitável a   elevação do grau de endividamento e o valor dos encargos financeiros. Já a inflação moderada, desacompanhada da indexação generalizada dos contratos de financiamento   promove a desvalorização das dívidas. Não por acaso, nesse momento, as políticas de metas nos países desenvolvidos estão empenhadas no aumento da inflação de bens e serviços para provocar a desvalorização das dívidas.

Cabe destacar o papel dos rentistas e o comportamento de suas rendas e de seu consumo. Preservados do processo que conduz à queda da acumulação de lucros e ao simultâneo aumento do grau de endividamento das empresas, os rentistas não contrabalançam esses resultados: resistem à queda de suas rendas e o desejo de acumular riqueza subordina a decisão de consumo. O comportamento das famílias típicas assalariadas é oposto. Porém aqui a formação de “deficits” é contraditória com a queda da renda derivada do declínio do investimento. Exceto nos momentos de crescimento da renda ou de inovações financeiras que permitam a antecipação do consumo, as   famílias não têm autonomia para decidir o gasto e compensar a queda do investimento. Em suma, o gasto derivado dos salários depende da disposição   dos capitalistas de ampliar o volume de emprego e da massa de salários. O que se pretende ressaltar é, neste caso, o caráter eminentemente passivo do gasto dos trabalhadores. Estas considerações fundamentam a conclusão de que um processo de queda do endividamento, numa conjuntura de redução do investimento, só poderá ocorrer com a intervenção de um agente externo disposto a incorrer em déficit e dívida nova.

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