*escrito por Luis Felipe Giesteira
O “retorno das políticas industriais” se dá sob domínio de duas expressões: a desglobalização (reshoring) e políticas orientadas por missões (MOIP). O Brasil tem uma longa tradição na primeira, já que boa parte de suas políticas industriais do passado (que evidentemente teriam de ser adaptadas para novas tecnologias) foram baseadas em internalização de setores inteiros, cada vez mais exigentes em capital e/ou em tecnologia própria. Na segunda, tem um excepcional ponto de partida com o diagnóstico elaborado em 2016 por nada menos que o principal nome das MOIP, a Profa Mazzucato, do University College London, e o principal nome no Brasil, Prof Caetano Penna, de Utrecht, sob encomenda do CGEE/MCTI. (https://www.cgee.org.br/the-brazilian-innovation-system)
Uma diferença essencial com as políticas industriais praticadas no Brasil entre 2004 e 2015 (não todas!), que abrangiam de call centers e óleo de soja e geralmente atendiam pedidos de incentivos de associações empresariais, é que MOIPs se concentram em poucas escolhas e tem caráter proativo. No entanto, isso é bem mais fácil dizer do que fazer. Mazzucato e Penna oferecem um interessante conjunto de propostas (na vdd, 8 “recomendações”) que de certa forma resolvem os dois aspectos: – apenas 6 grandes “setores” (saúde, infra urbana e interurbana, serviços públicos capazes de alavancar produtividade, tecnologias agrícolas, energia limpa e defesa e segurança); – escolhas recaíram sobre setores com elevado potencial, mas com frágil representação politica. Não é trivial de fato medir “potencial”. Talvez viagens a Marte tenham um potencial imenso, mas estão muito além do alcance da mão do Brasil. Talvez agregar valor a soja seja muito fácil, mas o avaço será mínimo e os efeitos derivados – industriais e em capacidade tecnológica – são mínimos. O trabalho de Mazzucato e Penna para o Brasil se aproxima da noção de “oportunidades de crescimento” e de “fronteira de diversificação” da teoria da complexidade (https://oec.world/en/profile/country/bra)
Três aspectos parecem importantes para avaliar “candidaturas” a MOIP: – intensidade de uso de ciência e tecnologia científicas (em oposição às tecnologias baseadas em taticidade, ou seja, em prática, destreza e tentativa-e-erro) – existência de uma base de conhecimento, dominada por ICTs bem constituídas e um conjunto mínimo de empresas capazes no Brasil, de preferência sob controle nacional (o que se aproxima da noção de “sistema setorial de inovação”) – potencial de impacto industrial propriamente dito, em particular em termos de efeito multiplicador e, por exemplo, índices de ligação de Rasmussen-Hirschman, os quais podem ser combinados com o índice de vantagens comparativas de Balassa. Costumo destacar a indústria aeroespacial e de defesa (A&D) como caso único de setores industriais-tecnológicos em que o Brasil é competitivo e ativo tecnologicamente, com alta taxa de P&D e aproximação da fronteira tecnológica global.
No entanto, há segmentos nos quais o panorama global mundial mudou de 2016 para cá e nos quais o Brasil também apresenta “fortalezas e oportunidades” notáveis – apesar de seus efeitos possivelmente demorarem mais a se realizar. Falo da fusão nuclear. A fusão nuclear tem aquela cara de MOIP típica. De fato, a obra que primeiro sistematiza a noção de MOIP segundo Mazzucato, o livro de Weinberg de 1966, sugere ser a questão energética a mais tipicamente depende de empreendedorismo estatal. A possibilidade da fusão nuclear já era vislumbrada então como um tipo de “bilhete premiado”. Ao remover a barreira energética, permitiria tanto um grande surto de crescimento econômico quanto a preservação ambiental. O tema voltou com tudo semana passada com o inédito feito do laboratório nacional (dos EUA) Lawrence Livermore, que pela primeira vez conseguiu um balanço positivo entre o dispêndio e a criação energética a partir da fusão. https://veja.abril.com.br/ciencia/pesquisa-com-fusao-nuclear-abre-caminho-para-fonte-de-energia-limpa/ Até então, as sedes mais promissoras eram consideradas Princeton e o Joint European Torus, em Oxford/UK, ambas estruturas na casa dos US$bi (a UE constroi outro de US$ 23 bi na França). No entanto, surpresas têm ocorrido. Em 2022 dois grandes feitos foram anunciados. Em setembro, o laboratório coreano KSTAR noticiou ter conseguido atingir – sob controle – temperaturas equivalentes a 7 X a do sol, graças à tecnologia disruptiva de supercondutividade. https://www.sciencealert.com/koreas-fusion-reactor-ran-7-times-hotter-than-the-sun-for-almost-30-seconds
Também a China obviamente tem várias inciativas em curso. Em outubro, um laboratório chinês anunciou ter conseguido uma corrente de plasma de 1 milhão de amperes – considerada condição crítica para atingir um “sol artificial”. Menos conhecido é que o Brasil está razoavelmente bem posicionado. Há bons grupos pesquisando o tema no país (p. ex IPEN e IME). Em 2021, o CNEN/MCTI promoveu um seminário sugerindo a formação de um Programa Nacional de Fusão Nuclear. O fato de possuir pesquisa relevante em plasmas e energia nuclear – área na qual o Brasil se desenvolveu de forma quase 100% autóctone, inclusive criando processos inovadores e baratos, como a de ultracentrifugação por levitação eletromagnética – é decisivo. Menos conhecido é o fato de o Brasil possuir 3 dos 4 tokamaks – rota tecnológica mais promissora para aproveitar a energia fornecida pela reação de fusão nuclear – existentes no hemisfério sul. Um está na USP, um no INPE e outro na UFES. https://nucleus.iaea.org/sites/fusionportal/Pages/FusDIS.aspx
A proposta do CNEN texo, assinada por pesquisadores do IFUSP, CNEN e INPE, contempla, além do plano, a criação de um “laboratório nacional”, no estado da arte. A aposta em energia limpa, inescapável para o Brasil, é essencial. O país tem potencial em outros segmentos – com destaque para eólica e hidrogênio verde. Por outro lado, não se pode perder de vista o quanto energia e economia andam juntas – as crises ocorridas em 2001, 2013 e 2015, custaram caríssimo em termos políticos e em perda de pontos de crescimento do PIB. A corrida pelos tokamaks é corrida de gente grande. EUA, Japão, China, Rússia, UK, França e Alemanha sediam nada menos que 93 dos 108 existentes. Quem chegar antes, terá um potencial imenso para robotizar tudo, no limite removendo a própria barreira demográfica ao crescimento. O Brasil está hj em 9o lugar. Fazer da fusão uma MOIP, partindo ou não da proposta do CNEN, colocaria o país em uma posição vantajosa (6o-7o) na revolução da energia limpa e abriria caminho para seu crescimento na 2a metade do Séc XXI.