A história do Brasil no Atlântico Sul

… o trato negreiro não se reduz ao comércio de negros. De conseqüências decisivas na formação histórica brasileira, o tráfico extrapola o registro das operações de compra, transporte e venda de africanos para moldar o conjunto da economia, da demografia, da sociedade e da política da América portuguesa[1].

A partir do momento em que um novo território era descoberto e militarmente dominado por alguma metrópole, seja Portugal, Espanha, Holanda etc., surgia um grande problema: a criação e apropriação do excedente econômico da região conquistada. A lógica do mercantilismo[2] consistia basicamente na transferência de excedentes de produção, ou seja, do lucro econômico das diversas regiões descobertas para o centro metropolitano. Uma análise um pouco mais atenta mostra, porém, que a extração desse lucro não era nada trivial e, talvez, excetuando-se algumas regiões ricas em metais preciosos, poderia ser uma tarefa praticamente impossível.

Para melhor entender esse problema, podemos dividir as estratégias de extração do excedente colonial levadas a cabo pelos empreendimentos metropolitanos em dois grandes grupos: desvio e criação de fluxos comerciais. Comecemos pelo primeiro, que abrange os itens pertinentes à canalização de um fluxo de riqueza já existente para as veias do capital metropolitano. Nesse caso, os excedentes já estavam sendo gerados pelo funcionamento das economias regionais e a grande missão dos colonizadores estava em desviar ou reacomodar as rotas de comércio, de modo a capturar os seus lucros. Um exemplo de tais rotas encontra-se na África predescobrimentos, principalmente nas trocas entre mouros e tribos locais[3]. Como escreve Alencastro, Jalofos — importadores de cavalos mouros e primeira etnia negra a vender escravos para os europeus — berberes, fulas, hauçás, mandingas — os maiores mercadores que há em Guiné (Donelha) — circulavam no entroncamento do Mediterrâneo e do Sudão, de permeio com desertos e savanas, pastores e agricultores, negros e mouros[4].

Um outro caso, clássico e mais ilustrativo, encontra-se na implantação das colônias portuguesas na Ásia do século XVI, notadamente em Goa. As rotas de comércio já existentes entre a Índia, China e Japão ofereciam grandes oportunidades de lucro aos mercadores lá instalados – vindos de Portugal ou já pertencentes à região – sem que houvesse a necessidade de remessa das mercadorias para a capital do império. Durante anos, Portugal tenta desviar o comércio local para Lisboa através da rota do Cabo, em geral em vão. Por vezes, os próprios funcionários lusos se esmeravam em atrapalhar o projeto metropolitano. Como destaca Alencastro a partir da obra O Soldado Prático de Diogo do Couto 1593, “ … em nenhuma parte é o rei [de Portugal] obedecido menos que na Índia”[5].

Esse breve exemplo ilustra a problemática da apropriação do excedente já existente por parte da Coroa. Portugal sofre o mesmo tipo de desventura em outras regiões como Moçambique, Alta Guiné e Macau. Um segundo tipo de estratégia, talvez ainda mais complexo, consistia na criação de fluxos e rotas comerciais para que os capitalistas da Metrópole e a Coroa pudessem extrair lucros do sistema. Nessa situação, mercadorias de grande aceitação no mercado europeu facilitavam a tarefa pois o papel do colonizador se resumiria a extrair esses produtos valiosos da colônia para vendê-los com altos lucros na Europa. Exemplos típicos são a prata peruana e o pau-brasil. A esse respeito, é importante destacar a grande diferença existente entre os sistemas mercantis de Portugal e Espanha. O segundo se especializando no comércio de metais e mercadorias mortas e o primeiro fazendo do comércio de mercadorias vivas, a saber, escravos, um de seus mais rentáveis negócios, seja em termos de lucros para capitais privados, seja em receitas tributárias[6]. Voltaremos a esse ponto mais abaixo pois a especialização da metrópole portuguesa no negócio negreiro será de suma importância para a constituição do sistema mercantil sul-atlântico do qual a estrutura brasileira emergirá. Quando estes produtos não estavam disponíveis, as metrópoles podiam ter grandes problemas na ocupação dessas áreas e na extração do excedente econômico essencial à sobrevivência da máquina mercantilista. Exemplo típico de nossa história foi a implantação do sistema açucareiro no Nordeste.

A partir da discussão dessas duas estratégias podemos entender o surgimento de um outro entrave para a administração metropolitana: a formação de uma elite local. Para superar o obstáculo da colonização, a solução encontrada pelas metrópoles foi o povoamento dos territórios com gente civilizada , em geral oriunda da Europa — como foi o caso das capitanias hereditárias brasileiras – ou a aliança com tribos e nativos locais, no intuito de organizar ou modificar o sistema produtivo para a realização da empreitada mercantilista[7].

Constituíam-se assim elites locais, que iriam no futuro adquirir interesses próprios e, muitas vezes, contraditórios aos objetivos metropolitanos. Cabem aqui dois exemplos: a questão das Leyes Nuevas , no Peru em 1542 e 1543, e as subseqüentes insurreições dos colonos entre 1540 e 1560[8] e o levante de 1592 e 1593 ocorrido em Angola contra o novo governador enviado pela coroa[9]. O povoamento de Angola dá-se, inicialmente, pelo sistema de capitanias hereditárias, como praticado no Brasil. O donatário Paulo Dias Novais concede terras e autonomia aos jesuítas e colonizadores que se propõem a habitar a região. Forma-se assim uma sociedade local onde colonos passam a cobrar tributos, geralmente em forma de escravos, da população e chefes nativos para depois exportá-los para os canais mercantis da Europa. Ou seja, surge uma elite regional, com interesses e rendas próprias, a qual passa a representar um estorvo para os propósitos régios. A partir daí, a Coroa nomeia um governador geral para tomar as rédeas da região, prática bastante comum na estratégia de colonização lusa. Neste momento, a elite local desentende-se com o governador régio a ponto de expulsá-lo do território. A situação atinge tal extremo que a Coroa vê-se obrigada a fazer uma intervenção mais incisiva na colônia, banindo a Sociedade de Jesus local, que, junto com os colonos, se apresentava cada vez mais como uma atravessadora na busca dos excedentes metropolitanos.

É a partir desse pano de fundo que devemos estudar a formação do Brasil entre 1500 e 1700. Como veremos, o Brasil de 1700 será fruto da estrutura mercantilista montada pela Coroa portuguesa para a apropriação possível do excedente colonial do Atlântico Sul. Lembrando que além do pau-brasil, as terras brasileiras não ofereciam nem um produto de rápida aceitação às redes mercantis da economia mundial e que a maior riqueza comercial encontrada pelos portugueses na África foi o tráfico de escravos[10], devemos entender o sistema de produção açucareira no Brasil – baseado no sistema escravagista africano – como a equação encontrada por Portugal para a solução do problema da extração do excedente econômico no império ocidental. Esse modo de produção sul-atlântico foi capaz de resolver grande parte dos problemas régios, dos quais já podemos antecipar os mais importantes.

Primeiramente, o controle sobre o tráfico negreiro dava à Coroa grande força sobre o sistema açucareiro da colônia brasileira, porque a reprodução deste passava a depender da importação de peças da África. Tal fato limitava a autonomia dos colonos, principalmente no quesito suprimento de mão-de-obra, que constituía o pilar do negócio açucareiro. Vê-se aqui também já uma primeira justificativa para o não aproveitamento da mão-de-obra indígena. Em termos pecuniários, além dos altos lucros obtidos com a venda do açúcar nos mercados europeus, a Coroa passava a arrecadar inúmeros tributos decorrentes do tráfico negreiro, seja a partir de taxas de embarque na África, seja em impostos pagos no Brasil. O negócio negreiro gerava também lucros para a Igreja, tanto na forma de taxas de batismo, cobradas para evitar o paganismo nas lavouras, quanto nos negócios praticados pelos próprios padres. Como veremos mais adiante, a Igreja, principalmente na sua vertente colonial através dos jesuítas, foi forte apoiadora do tráfico.

Além de gerar lucros dentro do sistema português, o tráfico também permitia a Coroa quebrar alguns monopólios espanhóis através da terceirização do mesmo. O fornecimento de escravos à região do Prata e outros locais das Índias de Castela abria canais de contrabando, gerando novas rotas de comércio e lucros importantes para os interesses lusos. Enfim, o sistema comercial Brasil-Europa e Brasil-África dinamizava os negócios coloniais, inserindo uma série de produtos nas rotas negreiras e açucareiras. Mais importante ainda, as oportunidades comerciais trazidas por um sistema de oligopsônio e oligopólio, permitiriam aos capitalistas portugueses e subseqüentemente aos brasílicos[11] se apresentarem como os únicos compradores do açúcar e os únicos vendedores de escravos no Brasil, fazendo do Atlântico Sul um circuito altamente lucrativo. O comércio bipolar Brasil-África e o sistema de trocas do Atlântico Sul nos séculos XVI e XVII torna-se essencial para o estudo da formação da nação brasileira. Nas palavras de Alencastro, “tal contexto geográfico e econômico configura uma realidade aterritorial, sul-atlântica, a qual faz flagrante o anacronismo do procedimento que consiste em transpor o espaço nacional contemporâneo aos mapas coloniais para tirar conclusões sobre a Terra de Santa Cruz, terra que não era toda uma só. …. [] É no espaço mais amplo do Atlântico Sul que a história da América portuguesa e a gênese do Império do Brasil tomam toda sua dimensão. A continuidade da história colonial não se confunde com a continuidade do território da Colônia[12].

2.2 Africanos: os escravos da Guiné

A partir de agora estudaremos mais a fundo as bases do sistema sul-atlântico. Num primeiro momento, faremos uma análise cronologicamente simultânea dos elementos que se entrelaçam para constituir a teia colonial portuguesa do período. Assim, passaremos pela formação das feitorias[13] e portos de tráfico africanos, veremos as principais rotas de comércio da época, rastreando os caminhos do lucro colonial, analisaremos a questão da não introdução de mão-de-obra indígena em nossas culturas e engenhos e, por fim, destacaremos a evolução do pensamento eclesiástico com relação à escravização de humanos, e mais especificamente, ao tráfico negreiro. Comecemos pela formação do mercado africano.

Engrenagens do sistema colonial sul-atlântico

1.       Sistema de feitorias e portos escravistas africanos (item 2.3).
2.       Rotas de comércio na América, África e Europa (item 2.4).
3.       A não utilização indígena na América portuguesa (item 2.5).
4.       A cumplicidade da igreja com o tráfico (item 2.6).

Comecemos pela formação do mercado africano. Uma pergunta bastante pertinente para iniciar a discussão é a seguinte: por que a África se torna a principal colônia fornecedora de escravos para o mundo mercantil? Evidentemente não podemos aqui dar uma resposta definitiva e completa. Porém, o estudo das diferentes formas de inserção dos nativos no mundo colonial, tanto na América portuguesa quanto na África, trará bastante luz a essa questão, ajudando sobremaneira na caracterização daquele que será o principal pilar do sistema sul-atlântico: o tráfico negreiro. Dois fatores iniciais são preponderantes na explicação da não utilização dos índios nas lavouras brasileiras. O primeiro é a inexistência de longas rotas de comércio na América do Sul à época do descobrimento, e o segundo, não menos importante, é a organização social indígena que não comportava a escravização de pessoas. Na África, encontraremos justamente as características sociais e econômicas opostas a estas, senão vejamos.

Como dito anteriormente, à época da chegada dos primeiros colonizadores europeus ao continente africano, já existiam várias rotas consolidadas de comércio. Muito provavelmente pela sua localização, entre o Oriente e o Mediterrâneo, e com certeza pelo avanço do Islã, a África, principalmente em sua porção norte e subsaariana, se caracterizava, desde cedo, como uma região de passagem e de contato entre pessoas e bens. Não é de estranhar, portanto, o encontro dos portugueses com vários povos mercadores e rotas de comércio já constituídas no século XV. Por isso, como diz Alencastro, o Continente Negro do século XVI se assemelha muito mais à Ásia do que à América.

Além dos exemplos de comércio africano já mencionados, podemos ainda citar aqui produtos da pauta de importações e exportações da Alta Guiné; o que dará uma noção mais realista da diversidade das trocas à época. Como oferta da região se destacavam, além do ouro, marfim, âmbar, cera, couros, goma-arábica, cobre e pimenta malagueta. Como importados, entravam panos bretões, flamengos, alentejanos e norte-africanos, cavalos[14] de várias regiões e miçangas da Índia. Nos termos colocados acima, a colônia africana se apresentava aos portugueses como propícia ao desvio de fluxos comerciais e não à criação ou cultivo de produtos para inserção no mercado mundial. Na verdade, veremos mais adiante, que isto não será tão fácil, pois essas rotas estarão, o mais das vezes, sujeitas a controles de nativos e investidas de metrópoles concorrentes.

Até aqui, não aparece nenhuma evidência que nos leve a concluir pela inexorabilidade do tráfico na África. Um dos fatores fundamentais para que este avançasse não foi mencionado ainda, qual seja, o de que uma das principais mercadorias do comércio africano da época já eram os negros. A organização social destes, ou de muitas de suas tribos, tinha, diferentemente dos indígenas americanos, a prática do comércio de gente por atividade normal. Nas áreas onde o valor mercantil do escravo não era reconhecido, o tráfico não deslancha logo de início[15]. Desse modo, nos primeiros contatos, os colonizadores portugueses passam a perceber uma maneira possível de obter lucro com as novas conquistas. Comprar escravos de nativos para vendê-los nas praças européias e coloniais. Em nossos termos, a extração do excedente econômico africano poder-se-ia dar pelo desvio de fluxos comerciais, cujo principal objeto de escambo eram pessoas. Em termos concretos, observamos que o tráfico começa a se avolumar a partir do segundo quartel dos quinhentos, quando a maioria dos escravos saía da Guiné-Bissau, Senegâmbia e África Central. Nessa época, o principal destino dos escravos ainda eram as ilhas atlânticas (Madeira, Canárias), a metrópole e as Índias de Castela, principalmente o Peru. Iniciava-se, portanto, um dos negócios mais rentáveis do período colonial.

Em paralelo, os portugueses desenvolviam nas ilhas atlânticas outras formas de apropriação do excedente econômico, com destaque para a cultura açucareira praticada principalmente na ilha da Madeira no século XV. Não vamos nos deter sobre este ponto pois estaríamos fugindo do assunto principal do capítulo. Vale, porém, lembrar que esse teste desenvolvido nas ilhas será de fundamental importância para a futura construção do sistema açucareiro no Brasil. Como bem diz Alencastro, São Tomé será nos 1500 a Madeira dos 1400, e o Brasil, por sua vez, será nos 1600 São Tomé do século XVI. Em suas palavras,

Plantas (cana-de-açúcar, banana, inhame, coco), métodos de cultivo, criação de gado grosso (bovino, eqüino e muar), gado miúdo (suíno, caprino, ovino), galinhas e patos aclimatados, tipos de moendas açucareiras, homens forros e escravos especializados no trabalho colonial e imunizados contra as doenças tropicais, métodos de tráfico negreiro, práticas curativas e alimentares, e até instituições de controle indireto, como a Irmandade do Rosário dos negros de São Tomé … [] … puderam ser empregados no Brasil por que haviam sido postos em prática anteriormente nas ilhas atlânticas[16].

 Começamos, portanto, a ver o desenho que se vai formando no Atlântico Sul. O início do comércio escravista na Guiné e África Central e a implantação das culturas de açúcar nas ilhas atlânticas constituir-se-iam nas principais sementes do sistema colonial português no ocidente. Antes de prosseguirmos, porém, devemos analisar um último ponto essencial ao entendimento da complementaridade Brasil-África. Faremos agora uma breve digressão sobre a geografia dos séculos XV a XVIII, notadamente com relação às rotas sul-atlânticas. Será curioso observar a grande diferença existente entre as distâncias reais e percebidas pelas pessoas daquele período.

Nas distâncias coloniais, como veremos abaixo, Angola está muito mais próxima do Rio de Janeiro do que do Maranhão e até do próprio Ceará. Para as pessoas da época, não fazia o menor sentido em pensar no país como o vemos hoje. Sobre esse ponto, é interessante observar comentários da época feitos por colonos no Maranhão. Em obra do padre Bettendorf encontramos curiosos relatos desses homens que “vinham do Brasil” — baianos vindos a cavalo pelo sertão. Ou ainda um comentário de Padre Vieira que dizia “mais facilmente se vai da Índia a Portugal do que desta missão [do Maranhão] ao Brasil”[17].

Para melhor entender este período, precisamos, então, analisar a real geografia colonial, submetida à navegação à vela, ventos e correntes. Assim como as ferrovias constituíam-se nos corredores de ligação entre nações e regiões no século XIX, os automóveis e rotas aéreas atualmente, os ventos, correntes e rios delimitavam os territórios coloniais. No caso sul-atlântico, encontraremos um anticiclone que terá papel fundamental em toda nossa formação (uma verdadeira estrada colonial). Como diz Alencastro,

Um dos eixos da bipolaridade escravista unindo a África à América portuguesa gira, justamente, na rota aberta entre as duas margens do mar por correntezas e ventos complementares. Na continuidade da corrente do Brasil, da deriva Sul-Atlântica, da correntede Benguela e da corrente Subequatorial. No giro — ao inverso dos ponteiros do relógio — dos ventos oeste-leste, entre o Trópico de Capricórnio e 30o S, na ida, e nos alísios de sudeste, abaixo da linha do equador, na volta. O impulso do movimento circular dos ventos e das correntes vem de uma gigantesca roldana de altas pressões, uma engrenagem oculta da história do Atlântico Sul — o anticiclone de Capricórnio —, estacionado no oceano entre 15o e 20o de latitude sul[18].

Vejamos um pouco mais como esta configuração climática e marítima condiciona a formação de nosso território. O ponto chave para a definição de rotas costeiras de navegação à vela no litoral brasileiro está em Fernando de Noronha[19]. Nas proximidades deste arquipélago, na altura do cabo de Santo Agostinho, a corrente Subequatorial se bifurca dando origem a duas estradas de uma só mão. A primeira, a corrente do Brasil, segue para o sul do país e a segunda, a corrente das Guianas, vai para o norte, até o Caribe. A navegação na contramão é impraticável. Para ir do Rio ou Salvador até São Luís há que rumar ao Atlântico sentido África ou Europa, para depois contornar regressando a esta área. De Belém e São Luís para a Bahia, encontramos trajeto ainda mais complicado, precisando o piloto novamente rumar a Europa para fazer o contorno do litoral, evitando a corrente das Guianas em sentido contrário.

Sobre esta curiosa geografia, três fatos são suficientes para dar a dimensão da dificuldade da navegação Norte-Sul na colônia à época. O primeiro diz respeito a um relato de Padre Vieira sobre uma expedição com soldados e missionários que iam de São Luís a Camocim, no Norte do Ceará. Estes, após navegar por cinqüenta dias (1.200 horas) contracorrente, decidem desistir da viagem, retornando a São Luís em doze horas. Curioso também é o argumento de Salvador de Sá para tentar fazer a capitania fluminense independente do governo geral baiano. Dizia ele que normalmente a viagem Rio-Lisboa levava de seis a sete meses, mas quando feita pela Bahia poderia levar, por vezes, o dobro do tempo. O último relato e, provavelmente, o mais hilário, diz respeito a um veleiro da marinha de guerra imperial (1839-1842) que saiu do Rio com destino ao Maranhão, “topou com ventos contrários que o fizeram arribar… em Montevideo”[20].

Vê-se, enfim, que os entraves à navegação costeira no Brasil não eram pequenos. A partir dessas condições, tínhamos uma divisão clara do nosso território: do Nordeste ao sul, o estado do Brasil e ao norte o estado do Maranhão[21]. Assistiremos também ao isolamento de São Paulo, entre outros motivos, por não constituir um enclave litorâneo aos moldes brasileiros. Assim, o Brasil da época era de fato Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Para concluirmos, resta somente destacar a proximidade Brasil-Angola. A navegação entre estes dois estados era calma e tranquila, tendo o anticiclone de capricórnio como motor natural[22]. Abre-se uma grande estrada entre Rio, Luanda e Salvador, que terá conseqüências irreversíveis na formação de nosso país. Como diz Alencastro, a navegação luso-brasileira será transatlântica e negreira.

2.3 Lisboa, capital negreira do Ocidente

Vejamos agora, com mais profundidade, quais eram essas rotas transatlânticas e negreiras, que terão impacto decisivo em nossa economia. Sabemos que Portugal e Espanha conseguem, no período que vai de 1500 ao final de 1600, estabelecer uma série de circuitos comerciais, capazes de drenar grande parte dos excedentes econômicos das colônias. Tanto no império oriental, quanto no ocidental, observa-se a “cristalização do capitalismo comercial na península ibérica”[23]. Nesta seção, nos deteremos na análise das rotas sul-atlânticas, pois são estas, evidentemente, as de maior interesse para nosso estudo.

Desde cedo, como mencionado, o comércio de escravos apresenta-se a Portugal como um caminho fácil para a exploração econômica africana. Os portugueses passam a ver o continente negro como um enorme estoque de mercadorias vivas, prontas para serem capturadas ou compradas para a revenda no mercado mundial. Como mostra Alencastro, estes vão gradualmente desbancando os genoveses do tráfico para o mercado hispano-americano, no final do século XVI, e passam a assumir a posição de maiores fornecedores dessas peças no Atlântico Sul. Com a conquista dos portos africanos da África Central e a constituição de uma rede de feitorias ainda neste século, o comércio negreiro deixa de ser apenas uma entre várias atividades ultramarinas iniciadas com os descobrimentos e converte-se no principal esteio da economia no Império do Ocidente. Segundo cálculos de Alencastro, em três séculos foram feitas aproximadamente 12 mil viagens entre os portos africanos e o Brasil, trazendo, vivos, 4 milhões de negros.

Questão bastante importante para o entendimento do início desse grande negócio português é a instituição do Asiento. Este contrato aparece como solução para o problema do fornecimento de mão-de-obra para as Índias de Castela. Os espanhóis, como já mencionado, haviam se especializado no comércio de mercadorias mortas, principalmente a prata peruana. Logo, não apresentavam um sistema logístico capaz de fornecer um fluxo constante de negros para suas colônias — principalmente por conta das características de suas naus e do reduzido número de portos marítimos de que dispunham. O contrato do Asiento é então criado para conceder o monopólio desse tráfico às Índias de Castela a outra metrópole. No período que vai de 1595 a 1640, inúmeros capitalistas portugueses se envolvem nesse lucrativo negócio[24], ampliando as posições lusas na Guiné e, principalmente, na região Congo-Angola, que se mostra, por sua geografia, mais protegida de investidas de metrópoles inimigas.

A partir da Restauração[25], em 1640, o tráfico luso de negros para as colônias hispânicas fica proibido, criando grande ociosidade para a máquina escravagista portuguesa. Essa insuficiência de demanda será prontamente resolvida com o acoplamento do mercado açucareiro brasileiro à rede de tráfico. A prosperidade do açúcar demandava um fluxo maior de escravos, esse fato ajudava os traficantes lusos. Constituía-se, assim, a fundação do sistema de exploração sul-atlântica.

Além de potencializar o negócio negreiro, a instituição do Asiento terá uma outra grande conseqüência para o desenho sul-atlântico. O acesso aos mercados platinos da Espanha dará, desde cedo, uma condição privilegiada aos portugueses e, no futuro próximo, aos brasílicos: o comércio da prata. Ora permitido, ora ilegal, a troca de negros por prata no circuito Luanda – Rio de Janeiro – Buenos Aires terá conseqüências marcantes na formação de nosso país. Símbolo dessa rota será a história da oligarquia dos Sá no Rio de Janeiro. Estes, possuidores de grande cabedal, além de governar a província fluminense por vários anos, bem como a de Angola, ocupam assento, através de Salvador de Sá[26], no importantíssimo órgão da Coroa Portuguesa da fase colonial, o Conselho Ultramarino. Grande marco desse poder foi a nau o Padre Eterno[27]. Construída toda no Rio, na ilha do Galeão a mando de Salvador de Sá, esse navio causou espanto até aos europeus. Nas citações de Alencastro sobre observadores da época,

… o mais famoso baixel de guerra que os mares jamais viram. [] Veio nesta Frota [do Brasil] aquele famoso galeão […] o maior que há hoje, nem se sabe que houvesse nos mares […] [28].

Ainda sobre a oligarquia dos Sá, veremos abaixo que a reconquista de Luanda pela expedição luso-brasílica em 1648 terá em Salvador de Sá e na mobilização fluminense seu maior apoio. A derrota dos holandeses e a retomada dos portos e feitorias da África Central, essenciais a todo sistema atlântico, terá uma de suas principais explicações na rota da prata. O interesse dos Sá em organizar a expedição da reconquista estava muito mais associado a ambições comerciais, troca de negros de Angola por prata do Peru via Buenos Aires, do que a questões nacionalistas ou de apoio à Coroa portuguesa, ou ainda a interesses açucareiros fluminenses[29].

Sobre a rota do prata também é interessante destacar o culto a Nossa Senhora de Copacabana, trazida ao Rio de Janeiro pelos comerciantes portugueses que importavam prata do Baixo Peru, os chamados, peruleiros. Esse culto, que traz junto o nome Copacabana, ilustra o alcance das redes comerciais do período em nossa formação. Para finalizar, devemos ainda citar algumas rotas de comércio que se formam na órbita do tráfico negreiro. O destaque aqui será para o fluxo bipolar formado entre Brasil e África, contradizendo um pouco a idéia do comércio triangular, bastante difundida por alguns autores em nossa historiografia[30].

Assim como a prata peruana constituía peça importante para as rotas comerciais sul-atlânticas, encontraremos no Brasil alguns produtos que também se tornariam fundamentais para a equação do nosso sistema mercantil. Ao contrário do açúcar, que tinha destino final nos mercados europeus, a maioria dos produtos brasileiros rumava para a África, dentro do circuito Brasil – Angola. Destes, destacavam-se a mandioca paulista e fluminense, essencial para a confecção da farinha escravista e de guerra, as conchas zimbo, utilizadas como moeda nos territórios africanos e a cachaça, ou jeribita brasileira, com grande penetração nos mercados da África. Do lado do continente negro, fluíam tanto para o Brasil quanto para a Metrópole, marfim, ouro, cera de abelha (para o fabrico de velas), peles, almíscar, cobre, goma, azeite de palma, etc., complementando e, portanto, aumentando a rentabilidade dos carregamentos negreiros.

Nas próximas seções abordaremos com mais profundidade a formação desses mercados, principalmente de produtos do Brasil, exceto o açúcar. É importante, entretanto, reter que no movimento de capitais e riquezas, “no intercâmbio de comidas, germes, gentes e práticas coloniais formadoras do espaço sul-atlântico”[31], a rota Rio–Luanda e Salvador será de suma importância para o sistema colonial. Veremos vários capitalistas portugueses e brasílicos fazendo fortuna nesse eixo. Um exemplo dessas conexões encontra-se na família Veiga,

Membro de uma família que entroncava nos consórcios de banqueiros cristãos – novos da corte de Madri, instalado em Buenos Aires e transitando por Lisboa e pelo Rio de Janeiro, Diogo da Veiga controlava negócios no Brasil, no Peru, em Angola, Portugal e Flandres[32].

2.4 Índios, os escravos da terra

Quando analisamos a questão do não aproveitamento dos índios brasileiros na cultura açucareira dos séculos XVI e XVII, nos deparamos com um fato a princípio contraditório. Por que não utilizar essa mão-de-obra farta e próxima das unidades produtivas para o cultivo e extração dos produtos comercializáveis? Como justificar todo o trabalho incorrido pelos colonizadores ao deportar milhões de negros africanos para nossas lavouras?

Uma primeira resposta, intuitiva e ainda hoje difundida, consiste em apresentar o índio, ou gentio brasileiro, como inapto para as atividades demandadas pelos engenhos e senhores de escravos. De fato, veremos abaixo que essa resposta é um tanto quanto simplista, ocultando uma série de relações comerciais e sociais existentes na colônia, que são de grande importância para o entendimento da história da época. Veremos, novamente, que a não utilização dos índios no sistema açucareiro está em perfeito acordo com as bases de funcionamento do modo de produção sul-atlântico, ou ainda, do sistema colonial do Atlântico Sul. Assim, para podermos responder à questão proposta acima devemos nos aprofundar no estudo da relação existente entre índios, negros, comerciantes, coroa e colonos à época.

O primeiro passo para o entendimento dessa rede passa por uma breve análise das precondições para a escravidão em geral. Sabe-se que para uma pessoa passar do estado de gente para coisa são necessários dois processos seqüenciais, a dessocialização, momento em que o indivíduo é separado de sua comunidade nativa, e a despersonalização, quando este perde o status de ser humano e passa a ser visto como um objeto ou mercadoria. As bases que podem proporcionar tais mudanças são as de que o indivíduo seja um estrangeiro à comunidade escravocrata, já que em geral povos não comercializam seus pares, e que os escravizados sejam deportados para uma distância minimamente razoável de sua terra natal[33]. Em termos espaciais, o território brasileiro não oferecia grandes obstáculos à escravização de índios, pois havia vastas distâncias para que estes fossem irreversivelmente deportados[34]. Quanto à questão de diversidades étnicas, sabemos também que no país habitavam diversos tipos indígenas, o mais das vezes desconhecidos entre si. Vejamos então por que a escravização indígena não implacou aqui.

Sabemos que no Brasil pré cabralino, diferentemente da África predescobrimentos, não existiam rotas de comércio entre tribos e comunidades distantes[35]. Como vimos acima, uma das precondições para a possibilidade do negócio escravista na África foi a existência de antigas rotas comercias de longa distância e do escambo de gente já praticado por algumas tribos. De fato, a organização social indígena brasileira tornava o comércio de índios, por eles próprios, praticamente impossível. Quando os inimigos não eram mortos, já que as guerras ocorriam em grande parte por motivos de vingança, o chefe tribal não reunia poderes suficientes para organizar sua tribo para cativar outros índios[36].

Além disso, os índios passavam a representar importantes aliados dos colonos e colonizadores nas guerras contra estrangeiros e nos levantes de negros. É verdade que inicialmente a colônia sofre fortes ataques indígenas em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e outras áreas. Porém, desde cedo, a Coroa estimula alianças com índios no intuito de se proteger das investidas de outras metrópoles e dos próprios negros que começavam a se amotinar nos engenhos e culturas. Neste ponto, vale mencionar a diferença do tipo de colonização da América e África portuguesas. No caso americano, o sistema de produção açucareiro dependia muito mais de um povoamento e ocupação territorial do que em África. A instalação dos engenhos, das cidades e dos portos de comércio representava grande vulnerabilidade a investidas inimigas, tanto de nações estrangeiras quanto de negros revoltosos. Por isso, devemos enxergar também uma política de boa vizinhança da Coroa portuguesa com os índios, na tentativa de proteger seus enclaves.

Exemplos marcantes dessa aliança encontram-se na importância dos índios na resistência holandesa do Nordeste, nos índios brasileiros que compunham a expedição holandesa para a conquista de Angola e no auxílio dos potiguares às tropas luso-brasílicas em ataque ao Quilombo dos Palmares. Como comenta frei Vicente do Salvador sobre a importância dessas boas relações com os indígenas,

[] … e principalmente, contra os negros da Guiné, escravos dos portugueses, que cada dia se lhes rebelam e andam salteando pelos caminhos e se não o fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os buscam e os trazem presos a seus senhores[37].

Ainda na linha de motivos para a não implantação de um sistema de tráfico e suprimento de índios na América portuguesa, devemos destacar a fragilidade dos mesmos em relação às doenças trazidas por colonizadores e escravos africanos. Seguindo a expressão popular do barato que sai caro, a alta mortandade de índios representava grandes prejuízos a traficantes e proprietários, que acabavam por preferir as peças da África[38].

Alguns pontos justificam tal fragilidade. Existem estudos que mostram a baixa resistência de índios a doenças européias e africanas. Fundamenta-se tal idéia com análises do tipo sangüíneo indígena e de DNA, que procuram comprovar o longo isolamento dessas comunidades em relação a outros povos e, portanto, seu baixo nível de resistência a agentes patológicos estranhos. Não obstante essa fraqueza intrínseca, o sistema de aldeamentos[39] que trazia os índios do mato para alojá-los junto aos enclaves coloniais, levado a cabo pelos colonizadores, aumentava fortemente a exposição dos nativos às doenças vindas da Metrópole[40] e do continente africano. Esse sistema acabou sendo mais mortal para os índios do que as próprias invasões feitas pelos colonos, principalmente bandeirantes. Ainda nesse ponto e sobre a questão da dessocialização, é interessante ver o que diz Padre Vieira em um de seus escritos sobre o Estado do Grão-Pará e Maranhão,

Por mais que sejam os escravos [índios] que se fazem, muitos mais são sempre os que morrem, como mostra a experiência de cada dia neste Estado, e o mostrou no Brasil, onde os moradores nunca tiveram remédio senão depois que se serviram com escravos de Angola, por serem os índios da terra menos capazes do trabalho e de menos resistências contra as doenças, e que, por estarem perto das suas terras, mais facilmente ou fogem ou os matam as saudades delas[41].

O último ponto a ser discutido talvez se constitua no mais importante de todos. Três outros fatores de ordem econômica contribuem decisivamente para o entrave da implantação de um amplo sistema de tráfico indígena na América portuguesa. O primeiro, já discutido anteriormente, diz respeito à grande dificuldade da navegação costeira Norte – Sul do Brasil. O sentido dos ventos e correntes transformava a missão de transportar índios, pela costa à vela, numa façanha praticamente impossível; na ausência de rotas terrestres, esse fato por si só poder-se-ia constituir num entrave bastante complicado. Some-se a isto a política da Coroa de incentivar deliberadamente o isolamento dos enclaves coloniais, proibindo as rotas comercias entre eles com o intuito de aumentar a dependência do comércio externo, notadamente o praticado pela metrópole.

Finalmente, devemos mencionar que o tráfico indígena ia contra toda a engrenagem do sistema colonial sul atlântico. Os pagamentos recebidos pelos traficantes de índios, em mercadorias, deveriam ser vendidos nos portos para depois serem exportados à metrópole ou África. Porém, os comerciantes que operavam nessas zonas eram, quase que sem exceção, vendedores de escravos e compradores de produtos coloniais. Logo, com o tráfico indígena não era possível fechar o circuito comercial. O traficante vendia um produto e com a receita deste era obrigado a comprar um bem praticamente igual ao que vendeu, ou seja, vendia um escravo índio para comprar um escravo negro, que por sua vez consistia em produto concorrente ao seu. Vê-se assim que a acumulação pelo tráfico de índios era incompatível com a estrutura comercial existente. O isolamento de São Paulo neste período[42], com seu regime de acumulação baseado no escravismo indígena pode, no limite, ser explicado por esse ponto de vista como mostra Alencastro.

Encerramos assim a apresentação dos principais motivos que explicam a não utilização dos índios como mão-de-obra em larga escala dos engenhos brasileiros. Porém, antes de prosseguirmos, vale a pena mencionar aqui o tipo de legislação da Coroa e as regras da Igreja em relação ao cativeiro na África e América. Aqui, a lei será contrária à escravização do índio e será santo quem protegê-lo devido ao seu direito natural de nascença. Na África, será santo quem salvar os negros do paganismo, deportando-os para a terra da evangelização, e as leis, por sua vez, estimularão o tráfico de nativos, promovendo os negócios sul-atlânticos. Como escreveu Mauricio Goulart sobre o veto do papa Urbano VIII ao cativeiro dos índios (1639): “Jogo marcado ou mera coincidência, não se alterando por isso seus efeitos, é evidente que mais uma vez o ponto de vista de um papa se coadunou às mil maravilhas com o interesse do erário português”[43].

Por tudo isso, podemos concluir que de fato o tráfico indígena não fazia sentido na América portuguesa, nas palavras de Alencastro,

Mesmo não sendo impossível, a acumulação proporcionada pelo trato de escravos índios se mostrava incompatível com o sistema colonial. Esbarrava na esfera mais dinâmica do capital mercantil (investido no negócio negreiro), na rede fiscal da Coroa (acoplada ao tráfico afro-atlântico), na política imperial metropolitana (fundada na exploração complementar da América e da África portuguesa) e no aparelho ideológico de Estado (que privilegiava a evangelização dos índios). Esse feixe de circunstâncias inviabilizava um sistema regular de intercâmbios similar ao do trato negreiro[44].

2.5 A evangelização numa só colônia

Vejamos agora a parte que cabia à Igreja na estrutura que se desenhava no império luso.

Sabemos que o papel dos padres na montagem do sistema colonial português foi de extrema importância; o alcance da empreitada jesuíta vai desde o Brasil, passando pela África, Índia, China até o Japão[45]. É bem verdade que em algumas localidades o fracasso da catequização será retumbante, devido, principalmente, à organização e resistência das forças nativas. Exemplos dessas derrotas são a resistência japonesa, com a expulsão dos padres feita pelo xogunato[46] no início dos 1600 e o fracasso inicial da Sociedade de Jesus na África Central, que culmina com a expulsão em 1555 dos jesuítas pelo rei do Congo.

Mas, apesar desses deslizes, os padres ocupam papel fundamental na construção do mundo colonial. Desde a ocupação territorial, passando pelo auxílio no controle dos nativos e do colonato local, e mais importante ainda, sancionando os atos comercias e bélicos metropolitanos por procuração divina, é bastante difícil conceber o sistema colonial sem essa peça fundamental, a Igreja. No caso sul-atlântico, veremos como a doutrina jesuíta se encaixará quase que perfeitamente com as outras partes do sistema. Para tal, analisaremos os dilemas iniciais dos religiosos com relação à questão da escravização, para depois observarmos como essa ideologia se transfigura, de modo a dar sustentação divina ao projeto colonial português e brasílico[47].

De início, a doutrina religiosa começa por considerar lícita a escravização proveniente de guerras justas, a saber santas, e principalmente por considerá-las uma ferramenta facilitadora da catequização. Porém, logo surgem controvérsias a respeito da origem dos cativos, ora escravizados numa guerra, ora escravizados por portugueses ou pelos próprios nativos e portanto da legitimidade divina de possuí-los. A esse respeito é interessante observar alguns comentários de padres antiescravistas da época. Dizia o padre Miguel Garcia, em Roma: “A multidão de escravos que tem a Companhia nesta Província, particularmente neste colégio [da Bahia] é coisa que de maneira nenhuma posso tragar”. Mais esclarecedora ainda é a crítica do padre Jerônimo Cardoso a respeito dos escravos que possuía a Companhia no Brasil e em Angola,

Pedimos ao rei que mande que todos [os índios] sejam livres, tendo nós muitos cativos e servindo-nos dos das aldeias, mais que todos os outros brancos … [em Angola dizem que] temos trato[48] e exercitamos mercancia sub praetextu conversionis [a pretexto de conversão]: e diria que se não podemos sustentar muitos [padres] sem ter estes [escravos] que sustentemos menos sem tê-los, porque assim o faziam os antigos[49].

Em geral, a questão da dúvida sobre a validade do cativeiro era resolvida analisando-se a origem do cativo. Inicialmente, se este tivesse sido aprisionado em guerra santa ou pelos seus próprios semelhantes, era considerado limpo. Se era oriundo de investidas dos próprios colonos, seu status de escravo poderia ser questionado. Sobre este ponto dizia o angolista padre Barreira, “E a conclusão será, que quanto mais entramos pela terra e tratamos dos negros, tanto mais experimentamos que de nenhuma parte de Guiné vão peças que se possam comprar mais seguramente que as de Angola.” Símbolo dessa indecisão, e do esquema sul-atlântico, será a interpretação dada por Barreira e pelo padre Vieira do postulado in dubio melior est conditio possidentis [na dúvida, prevalece o direito do possuidor]. Para o primeiro, na dúvida, prevalece o direito de propriedade de quem comprou o escravo negro, para o segundo, prevalece o direito da posse de liberdade do nativo indígena.

O surgimento desses dilemas e levantes punha em risco o esquema colonial. Os padres revoltosos eram prontamente recambiados para outras áreas, de preferência não coloniais. Mas só a remoção destes não era suficiente, fazia-se mister a construção de uma doutrina que acabasse de uma vez por todas com as insurreições inapropriadas e desse sustentação aos projetos de domínio colonial. Surgirá então a Teoria Negreira Jesuíta, baseada principalmente na experiência dos padres no Brasil e África, acostumados com a práxis do mundo colonial[50]. Esta, ao longo do tempo, se constituirá numa ferramenta ideológica extremamente eficaz para os fins da coroa portuguesa.

A jornada ultramarina lusa teve, desde muito cedo, o apoio da Igreja Católica, que via nestas expansões uma grande oportunidade para estender seu domínio e influência. Prova de tal apoio se viu na bula papal Romanus pontifex de 1455 que dava o domínio e monopólio dos territórios conquistados por Portugal “para compensar tão grandes perigos, trabalhos e gastos de fazenda, com perda de tantos naturais dos referidos reinos [Portugal e Algarve]…[] para proteção e aumento …[] da Fé católica”[51]. De fato, essa recomendação papal, associada à concepção que os europeus tinham da África, facilitou sobremaneira o trabalho dos jesuítas na adaptação da doutrina vigente. O trecho abaixo, narrado por Alencastro, ajuda a mostrar o lugar que ocupava o paganismo africano na mente européia,

No Esmeraldo vem escrito que negros com rabo de cão e cobras de quarto de légua corriam soltos na Guiné. … [] O jesuíta Sandoval sugere um determinismo geográfico. No seu tratado sobre a escravidão negra, ele sustenta que os calores e os desertos da África misturavam todas as espécies e raças da natureza nas vizinhanças dos poços, criando um ecossistema particular capaz de engendrar hibridações monstruosas. Tal circunstância fazia da África o continente de todas as bestialidades, o território de eleição do demônio[52].

A esse respeito, também é curiosa a caracterização feita pelos europeus de Jinga, a rainha de Matambo[53] e da tribo Jaga[54]. Esta, como relatam padres italianos, carregava os vícios do paganismo: infanticídio, antropofagia, poligamia e haréns de prazeres, feitiçaria e luxúria eram práticas comuns de seu reino. Daí para a construção de uma teoria que justificasse o tráfico de negros que tivesse em vista a salvação era apenas um pequeno passo. A escravização apresentar-se-ia, inicialmente, como uma etapa do processo, um mal necessário, em que estes pagãos seriam salvos de si mesmos ao serem deportados para às terras santas da colonização evangelizadora.

A partir dessa caracterização do mundo africano e da intensificação do negócio negreiro, valia tudo para difundir a salvação. O comércio sul-atlântico não poderia parar; as rendas dos padres na África não poderiam ser comprometidas, como bem mostra um texto de jesuítas da época, “e os sobas[55] são [como] herdades do Alentejo [para gerar rendas]”[56]. É nesse contexto que a teoria negreira jesuíta atinge seu ápice, ou ainda, o maior avanço na adaptação das leis divinas à realidade colonial: o batismo do negro trazia-o para a fé cristã, mas infelizmente não era capaz de libertá-lo do cativeiro, pois poderia comprometer os negócios.

Assim, tudo se encaixava: a ordem colonial era mantida, o tráfico era permitido pela Igreja, mas não sem controle, já que a sanção divina era essencial; a Coroa, por sua vez, continuava a difundir a fé católica, se alinhando aos interesses do papado e, aos mercadores, restava vender as mercadorias, já que inexplicavelmente a evangelização salvava os negros do paganismo mas não do cativeiro. Como diz Alencastro com grande clareza:

o comércio negreiro apresentava-se como um elo fundamental da inserção da África no mercado mundial. Suprimi-lo seria pôr em xeque o domínio ultramarino português e romper a cadeia de comércio montada no Império do Ocidente. Acessoriamente, as almas dos negros que poderiam ser remidos pela escravidão na América se perderiam no paganismo dos sertões africanos[57].

Ainda sobre este assunto, voltemos um pouco à questão da escravização indígena. Vimos acima que curiosamente as leis da Coroa e da Igreja se apresentavam de forma contraditória na América e África. Um nativo tinha de um lado do Atlântico o direito natural de liberdade, devido à sua nascença, e de outro o direito de ser cativado e, portanto, a privação da liberdade. Evidentemente, depois de tudo que foi posto, percebemos que a contradição é apenas aparente. A evangelização numa só colônia como mostra Alencastro, será novamente a solução ótima do ponto de vista da extração do excedente econômico no Atlântico Sul. O grande descimento[58] pelo mar oceano dos negros africanos representará mais uma teia desse complexo sistema de exploração econômica, que, como estamos vendo, cada vez mais se assentará sobre a complementaridade Brasil–Angola.

Para concluirmos esta seção, vale a pena analisar um trecho de um sermão de Vieira, de excepcional retórica, dirigido a negros brasileiros,Assim, a Mãe de Deus antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá [na África] como vossos pais, vos não perdêsseis, e cá [no Brasil] como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário. … [ ] Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a Sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre![59].

2.6 As guerras pelos mercados de escravos

Até aqui fizemos uma análise simultânea das diversas facetas do mundo colonial sul-atlântico dos séculos XVI e XVII. A exposição procurou abordar os pontos de forma esquemática, de maneira a contribuir na construção do desenho do  modo de produção sul-atlântico. Nesta seção, adotaremos uma postura diferente. Veremos um teste empírico que nos mostrará como todo este sistema estava correlacionado. Para tal, estudaremos dois fatos de nossa história que se apresentam como experiência única e inequívoca para a comprovação do que estamos tentando demonstrar até então. São estes: a invasão de Luanda feita pelos holandeses em 1641 e a retomada de tal praça pela expedição luso-brasílica de 1648. Comecemos pela história dos holandeses.

A investida da Holanda na América portuguesa se intensifica no primeiro quartel do século XVII. A guerra de corso, que consistia em ataques a naus e tumbeiros lusos, passa a demonstrar-se insuficiente para os anseios batavos. O interesse nas rotas comerciais coloniais, somado às rivalidades desencadeadas pela Guerra dos Trinta Anos na Europa (1618-1648), faz com que os holandeses se debrucem, definitivamente, sobre uma estratégia de ataque ao sistema colonial sul-atlântico. A América portuguesa[60], considerada o flanco mais próspero e vulnerável do império luso-hispânico, será, portanto, o alvo privilegiado da investida dos Países Baixos. O plano batavo culmina com as invasões de Salvador em 1624, pela frota de Jacob Willekens, e a tomada de Olinda e Recife, em 1630, por Diederick van Waerdenburch[61].

A empreitada holandesa em solo brasílico não será nada fácil. Os batavos não conseguem penetrar no interior devido à resistência do colonato local, quase sempre aliado aos índios e estarão, portanto, sempre sujeitos a investidas e contra-ataques dos locais. Em termos comerciais, os negócios em geral também não fluiriam de forma tranqüila. Como bem diz Alencastro, a ortodoxia católica dos portugueses era quase sempre marcada por grande flexibilidade em questões comerciais. No caso holandês, observava-se o oposto; apesar de serem estes deveras flexíveis quanto a questões culturais e religiosas, demonstravam-se bastante ortodoxos na administração dos negócios. Esta postura será extremamente problemática quando aplicada à condução do negócio açucareiro. Os senhores de engenho, acostumados ao farto crédito lusitano e à venda de escravos a prazo, não tardariam em se amotinar contra as técnicas rigorosas dos batavos, muitas vezes melando todo o negócio açucareiro.

Mas enfim, o que nos importa neste capítulo, é analisar como a invasão holandesa comprova a tese sul-atlântica de Alencastro e não fazer uma discussão sobre a ocupação do Nordeste pelos holandeses. Para tal, nos concentraremos agora nos lances que sancionam essas idéias. Os principais personagens da ocupação da Holanda serão, sem dúvida, a Companhia da Índias Ocidentais[62] e o príncipe Maurício de Nassau. É no comportamento deste último que encontraremos uma das provas empíricas mais fortes do esquema sul-atlântico. Desde cedo, Nassau percebe a grande importância do tráfico negreiro para o sistema açucareiro nordestino.

Nas palavras do governador,

Necessariamente deve haver escravos no Brasil, e por nenhum modo podem ser dispensados: se alguém sentir-se nisto agravado, será um escrúpulo inútil […] é muito precisoque todos os meios apropriados se empreguem no respectivo tráfico na Costa da África[63].

Como mostra Alencastro, Nassau, o príncipe humanista e negreiro, introduz o escravismo no cálculo econômico dos burgueses de Amsterdã “sem o trato negreiro e os portos angolanos, o Brasil holandês seria inútil e sem frutos para a Compagnie”[64]. Na verdade, a WIC nunca deixou de lucrar com as peças capturadas em África e nos tumbeiros à época das guerras de Corso. Porém, sua postura quanto à tomada de posições na África Central sempre foi mais dúbia, já que não era simples para os capitalistas holandeses entenderem a importância das feitorias e redes de tráfico no sistema sul-atlântico. Assim, quem define e implaca o ataque à África é Nassau, que, por estar muito mais próximo da realidade colonial, é capaz de depreender a importância do braço negro do Atlântico Sul.

Inicialmente, o príncipe holandês investe e conquista São Jorge da Mina e, na seqüência, levanta feitorias em Pinda e no reino do Soyo, ambos na África portuguesa. Ao perceber que estes postos não davam conta de abastecer Pernambuco, Nassau investe contra Luanda, conquistando-a em 1641. Vale notar que a metrópole só é avisada da expedição um dia após a sua partida. Mais do que isto, a mobilização de tropas para tomar Luanda num período em que a Bahia ainda não estava sob o domínio holandês dá uma idéia do quão importante eram as regiões escravagistas da África Central. Nassau troca uma possível investida contra Salvador pela tomada de Luanda. Mostra-se, assim, de forma prática a importância do eixo Brasil – Angola. Mas, para dar ainda mais força ao argumento, vejamos o que fazem os portugueses e brasílicos quanto a isto.

Da mesma forma que alguns holandeses não entendem a investida de Nassau contra Luanda em detrimento de um ataque a Salvador, muitos habitantes fluminenses não se conformam com a mobilização de uma frota para retomar Angola em 1648, deixando a cidade do Rio de Janeiro praticamente desguarnecida. Assim, discutiremos, a partir de agora, a postura luso-brasílica quanto à importância do controle dos negros de África.

Por tudo que foi argumentado até então, espera-se que a conquista de Luanda tenha causado enorme alvoroço, tanto na Corte portuguesa, quanto nos grupos brasílicos. De fato, o ocorrido foi bombástico.

No final dos 1500, muitos colonos já percebiam a forte ligação existente no Atlântico Sul. Como alertava um importante homem colonial ao rei em 1591. “Se perderão o Estado do Brasil, os dízimos dele, porque a ano que falta a escravaria d’Angola não há lavrar açúcar, e se faltar dois começarão a fechar os engenhos, e se forem três fecharão de todo, nem haverá gente para cortar o pau [de cana]”[65]. Muito antes da investida de fato, já previa Luís Mendes de Vasconcelos, em 1616, a tomada de Angola, por ser praça donde depende todo o meneio do Brasil e Índias, como cita Alencastro. Interessante ainda é o seguinte resumo de Vieira sobre a situação luso-brasílica após a tomada de Luanda,

 O Brasil – que é só o que sustenta o comércio e alfândegas e o que chama aos nossos portos [metropolitanos] esses poucos navios estrangeiros que neles temos – com a desunião do Rio da Prata, não tem dinheiro, e com a falta de Angola, cedo não terá açúcar, porque este ano se não recolheu mais que meia safra e no ano seguinte será forçosamente menos[66].

 Ou seja, a retomada de Luanda mostrava-se essencial para o funcionamento do sistema sul-atlântico. De fato, veremos que a estratégia luso-brasílica será a de expulsar os holandeses de Angola para fazê-los largar do Brasil. Vejamos, portanto, o que foi feito, na prática, para a reconquista daquele território. Desde logo, os agentes coloniais se alinharam para montar a necessária expedição. Interesses que giravam em torno do nosso tão discutido eixo começavam a confabular para o lançamento de tal empreitada. Destacam-se aí, fora a óbvia vontade régia, os brasílicos envolvidos com o tráfico negreiro e troca de prata, o colonato do comércio angolano, os jesuítas e todos os capitalistas que “tinham suas fichas nos negócio do Atlântico Sul”.

A investida seria ainda mais complexa, pois nesse período Portugal saía da União Ibérica[67] e estava, portanto, sob a mira de Espanha. Uma guerra aberta à Holanda jogaria por terra todos os esforços diplomáticos e colocaria a nação portuguesa sob fogo cruzado de duas grandes potências. O ataque a Luanda deveria ser, portanto, clandestino, à socapa como dizia o embaixador português Sousa Coutinho em Haia. Por tudo isso, o peso da organização recaía primordialmente sobre os brasílicos, mais especificamente na figura de Salvador de Sá[68], importante líder brasílico.

O local eleito para montar a expedição foi o Rio de Janeiro[69]. Este, pela proximidade dos suprimentos indígenas, farinha de mandioca primordialmente, pela concentração de jesuítas que continha e, principalmente, pela oligarquia interessada no comércio da Prata que tinha, apresentava-se como base ideal para a constituição de nossa armada. Entre contribuições de padres, mantimentos produzidos por índios, capitais brasílicos e escravistas e ajuda da Coroa, compõe-se a frota de onze naus, quatro patachos e quase 2 mil homens. Víamos assim a formação da nossa primeira grande expedição.

Em 1648, após o fracasso de duas outras flotilhas que deixaram o Brasil em 1645, Salvador de Sá toma Luanda e restabelece a chamada Pax Lusitana, ou seja, coloca o Atlântico Sul de volta em seus eixos. Este foi, portanto, o verdadeiro significado da expedição de 1648. Como resume Alencastro,

Vale insistir, a abertura de uma frente de combate na África, deslocando forças navais e infantaria do Reino e do Brasil para Angola, quando a maior parte do Nordeste estava ocupada e reides navais holandesas ameaçavam a Bahia e Rio, ilustra espetacularmente o papel chave desempenhado pelo controle dos mercados de escravos africanos. Fazendeiros, mercadores e peruleiros do Rio de Janeiro empenham-se no preparo da expedição, em nítido contraste com a recusa dos paulistas, igualmente instados a participar da empreitada[70].

 

Eventos que podem corroborar o funcionamento das engrenagens do Atlântico sul
1.       Tomada de Luanda por Maurício de Nassau em 1641.
2.       Invasão de Luanda por Salvador de Sá em 1648.

Para encerrar esta seção veremos agora duas questões complementares ao que já foi dito antes, quais sejam: a ajuda dos jesuítas na expedição de Sá e mais uma prova do isolamento paulista.

Além do auxílio material, o destaque da contribuição dos padres à tão virtuosa expedição terá sido o apoio espiritual. Alterando datas, festas e comemorações santas, alguns padres fazem com que todo o projeto de Salvador de Sá seja revestido de simbolismo católico. Para agilizar a partida das naus, que dependia das monções para Angola, este pede auxílio aos jesuítas que logo declaram a expedição como santa e determinam o dia da partida por “visão divina”, “por profecia e como coisa revelada por Deus”[71]. Sobre a segunda questão, veremos na expedição de 1648 mais uma prova cabal do isolamento dos paulistas. Ao mesmo tempo em que todas as forças brasílicas estavam concentradas na retomada do posto africano, os bandeirantes lançam a sua maior e mais audaciosa empreitada, que ficou mais tarde conhecida como a Bandeira dos Limites. Liderada por Raposo Tavares e menosprezada pela Coroa e jesuítas essa investida irá definir muitos dos limites territoriais do país de que temos conhecimento hoje. Duas expedições com destinos geográficos opostos, estas ilustram, na verdade, dois caminhos da colonização, antagônicos como suas direções.

2.7 Angola brasílica

As guerras pelos mercados de escravos mostraram, na prática, a complementaridade existente entre as duas margens do Atlântico Sul. Veremos nesta seção, de forma mais detalhada, algumas das principais características da bipolarização Brasil–Angola. Num primeiro momento, estudaremos a forte penetração de três produtos brasileiros nos territórios africanos. Em seguida, faremos uma análise mais cuidadosa das implicações políticas da reconquista levada a cabo pela expedição luso-brasílica e das subseqüentes rapinas negreiras praticadas por nossos “heróis”.

Quando estudamos a questão da não introdução de mão-de-obra indígena nas lavouras açucareiras, vimos que tal fato se deu, principalmente, pela interrupção do circuito mercantil. Ou seja, a troca de índios cativos por açúcar e produtos de exportação, feita pelos bandeirantes, era incompatível com o fluxo de troca de escravos negros por mercadorias coloniais praticado pelos capitalistas lusos e negreiros. Não havendo uma coincidência de vontades e na falta de moedas que facilitassem as trocas, o tráfico indígena não vinga. No caso do comércio Brasil–Angola, encontraremos algo parecido. Entretanto, neste circuito, aparecerão os produtos brasileiros necessários à troca de negros, a saber: farinha de mandioca, moeda zimbo e cachaça com os quais o ciclo se fechará.

Produtos da rota Brasil–África
1.       Farinha de mandioca.
2.       Zimbo.
3.       Cachaça (jeribita).

A mandioca terá grande serventia para os colonos desde cedo. A farinha desta, que índios já preparavam, é rica em calorias, constituindo-se, ainda hoje, em importante fonte alimentar para os africanos[72]. Inicialmente cultivada na América portuguesa[73], esta passa a ser introduzida nas rotas de comércio sul-atlânticas ainda no século XVI. Suas principais utilizações surgiram, além do consumo indígena, de missionários e colonos, na alimentação de guerra e tráfico negreiro[74]. A substituição do trigo nos tumbeiros por esta reduz os fretes, impulsionando os negócios da carreira Brasil—Angola. Na África, a tribo de guerreiros Jaga passa também a utilizar a farinha de guerra, que aumentará seu raio de alcance nas expedições de captura. Assim, a mandioca cultivada pelos índios da América portuguesa é inserida no circuito sul-atlântico, ajudando, entre outras coisas a desencravar a região fluminense, e aparecendo, portanto, como o primeiro importante produto de escambo de tal eixo. Como diz Alencastro,

no final das contas, Luanda e Benguela nunca puderam se passar da farinha vinda do Brasil. No início do século XIX, o governador de Angola reiterava ordens régias exigindo que os negreiros trouxessem mandioca dos portos brasileiros no torna viagem, por causa da insuficiência da produção africana[75].

 Outro importante produto deste eixo, e deveras curioso, será um tipo de concha encontrada em praias no sul da Bahia e em algumas regiões africanas. Utilizada principalmente no Congo, como moeda de troca e ornamentação, essa curiosa peça será de grande valia para o trato aqui estudado. Como diz frei Vicente do Salvador “[aqui colhia-se] muito zimbo, dinheiro de Angola, que são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias e trazem por elas navios de negros”[76]. Além da facilidade de coleta e transporte, some-se ainda a sonegação de impostos associada a este produto, como denuncia um funcionário régio em 1612. Por tudo isso, o comércio de zimbos avança, chegando até a causar problemas inflacionários no reino do Congo. A esse respeito, é interessante o relato de um bispo da diocese do Congo e Angola para a Corte, sobre a política antiinflacionária de Mbiki-a-Mpanzu, rei do Congo.

Tem el-rei de Congo proibido com grandes penas [penalidades] que não levem os vassalos de V.M. a seus reinos zimbo do Brasil e de outras partes, porque como essa é a moeda que neles corre, está, com a grande quantidade que vai de fora, tão abatido o seu [zimbo], que perde nele as duas partes de suas rendas[77].

Bebidas alcoólicas já faziam parte do consumo de tribos africanas. Entre cerimônias e ritos, esse bem já tinha bastante apreciação dos nativos. O mais popular era o malafo, ou vinho de palma, como diziam os portugueses ser extraído, evidentemente, de palmas ou coqueiros. Com o advento da colonização e a destruição de várias áreas de palmeiras tanto por colonos quanto em guerras tribais, abre-se caminho para a introdução das aguardentes européias no continente africano. Destacavam-se, inicialmente, a bagaceira portuguesa e o vinho espanhol.

No Brasil, a nossa aguardente, a cachaça, era obtida como subproduto da cana nas moendas. Com o custo barateado por tal condição produtiva, veremos que esta será essencial para a complementação dos lucros do engenho, principalmente em épocas de queda dos preços do açúcar – tal qual na segunda metade do século XVII. Diferentemente da mandioca e dos zimbos, esta, como mostra Alencastro, enfrentou concorrência da metrópole tanto no mercado brasileiro, quanto nas suas investidas africanas. Prova disto foram os conflitos entre produtores e a Companhia Geral de Comércio portuguesa na primeira metade dos 1600. A Companhia demandava à Coroa que extinguisse o comércio de tais bebidas, consumidas em grande prejuízo do Tesouro Real[78].

Na África, conhecida como jeribita[79] do Brasil — provavelmente pelo nome de um vinho feito da palmeira Jeribá aqui no início dos 1600 —, será introduzida pelos brasílicos, principalmente após as guerras do século XVII, e não tardará em cair no gosto dos africanos. Desde logo, o comércio de jeribita será de grande atratividade para nossos colonos pois irá baratear muito o torna viagem com negros. Bom exemplo é o contrabando que praticava constantemente o próprio governador de Angola (1680-1684), fato que, mais tarde descoberto, causará “notório escândalo criado pela infração à ordem régia”.[80] Ao longo dos 1600 a jeribita vai aumentando sua participação no mercado, sendo cada vez mais valiosa e importante para a rota sul-atlântica. Como consta num parecer de defensores do comércio de cachaça endereçado à Coroa,

… sendo a aguardente do Brasil o principal gênero com que se resgata quantidade de escravos nos confins do Congo, nos Dembos e noutras partes do sertão. [A jeribita era a mercadoria com a qual] se resgatam mais escravos do que com nenhum outro gênero[81].

A grande diferença da jeribita em relação a outros produtos brasílicos será a concorrência de similar metropolitano. Evidências de tal disputa encontram-se nos diversos protestos, principalmente no Rio de Janeiro, contra as proibições de comercialização deste produto e dos vaivéns nas determinações régias à época. Curioso, a respeito, são dois relatos desse período sobre as vantagens e desvantagens do consumo desta bebida. Um fundamentava a proibição da Coroa, alegando ser a jeribita venenosa, podendo até causar intoxicações mortais; o outro recomendava dar “de manhã e à noite ao recolher alguns golos de jeribita a cada escravo [para mantê-lo em boa saúde]”[82]. Mais importante do que motivo de querelas comerciais, será a pista que nos dará o tumulto dos jeribiteiros sobre a nova configuração do Atlântico Sul após as guerras holandesas.

A revolta de alguns senhores de engenho no Rio de Janeiro na segunda metade dos seiscentos e o contrabando de cachaça feito por brasílicos será uma pequena parte visível do movimento que se desenhava aqui à época. Com o enfraquecimento do império português, decorrente de disputas entre metrópoles, e com o subseqüente aumento da autonomia brasílica na administração dos negócios coloniais, veremos o fortalecimento de uma elite local, com poder e interesses próprios, questão já levantada na primeira seção deste capítulo. Evidência marcante dessa mudança será a organização da expedição de 1648 e a retomada de Luanda.

Assim, assistiremos na segunda metade do século XVII ao que Alencastro chama de novo pacto político entre a corte e os guerreiros ultramarinos . Diversos homens influentes da América portuguesa serão promovidos e transferidos para Angola como prêmio por serviços prestados à Coroa. As conseqüências evidentes serão a intensificação da relação Brasil–África e, portanto, o aumento considerável do volume de produtos comercializados entre esses dois pólos. Do lado brasílico, já discutimos um pouco da história dessas mercadorias. Vejamos agora um pouco mais acerca da história da principal mercadoria africana: os escravos.

Entre os brasílicos transferidos para administrar Angola, destacam-se três: além de Salvador de Sá, João Fernandes Vieira[83] e André Vidal de Negreiros[84]. Estes marcarão o período brasileiro da história de Angola e implantarão a política econômica tão bem descrita por Alencastro como “a ofensiva de rapina”[85]. Não interessados que estavam nos problemas administrativos e coloniais e na desprezível remuneração de cargos burocráticos, como os de governador, estes homens vinham à África com um intuito bem claro: caçar e vender escravos. Com a desculpa de fazer guerra santa e honrar as armas da coroa portuguesa, várias tribos seriam massacradas para a captura de negros[86].

Desde cedo a ocupação de Angola, nos moldes portugueses, foi pautada pelo dilema comércio–guerra. Note-se que nunca houve o dilema comércio–povoamento ou ainda guerra–povoamento. Os partidários do comércio diziam que as guerras desestabilizavam as redes de trocas interioranas, trazendo grandes prejuízos ao negócio negreiro. Os belicistas, por sua vez, viam nas investidas ao interior possibilidade de lucro rápido, farto e alto. Nossos representantes aqui instalados, optarão, até por causa da curta estada, pela segunda via. A rainha Jinga acusará Salvador de Sá de ter sido “um dos mais vorazes governadores da colônia”[87].

Feita a opção, cabia escolher o alvo. Este, por sua privilegiada posição seria, como sempre foi, o Congo. Vejamos um pouco mais acerca da famigerada história dessa nação – que ilustra bem a vida no Atlântico Sul, e a relação deste com nossos colonos após as guerras holandesas. Marcado logo de início pelo fracasso da implantação jesuíta, esse território terá um dos períodos mais turbulentos de toda a África entre os anos de 1500 e 1700. Por causa das alianças dos congoleses com Roma, holandeses, castelhanos, conversão ao catolicismo – o rei do Congo Nzinga Nkuwu torna-se católico e muda seu nome para d. João I ainda no século XVI – e ainda massacres de angolistas, portugueses e brasílicos, este território acaba se configurando como o palco privilegiado das políticas e conflitos do mundo colonial ocidental[88].

Os brasílicos, por sua vez, saberão aproveitar bastante bem as vantagens oferecidas por tão rica área. Não iremos nos deter aqui em todas as empreitadas levadas ao cabo por nossos colonos. Para ilustrar nossa permanência, bastará a análise daquela que foi, provavelmente, a maior guerra da África Central, levada a cabo por André Vidal de Negreiros na segunda metade de 1600: a batalha de Ambuíla. De início, Negreiros, assim como João Fernandes Vieira, encontra dificuldades em organizar a investida ao Congo. Este reino, que já contava com uma considerável rede de alianças, se mobiliza na tentativa de mostrar que “… Negreiros tinha por alvo um reino cristão e por isso não constituía uma guerra justa , nos termos da lei canônica e da lei régia”[89]. Porém, André Vidal de Negreiros se movimenta, e após alguns lances diplomáticos, consegue que um padre descaracterize o reino do Congo como cristão. Dizia este sobre os cônegos favoráveis a Mani Mulanza, rei daquele território: “Cismáticos e idólatras … [ ] Porque lhe têm metido em cabeça que é irmão de el-rei de Portugal, sendo um negro no trato e no governo, como todos os mais daqueles reinos”. Após mais alguns movimentos e impasses religiosos, tudo estava pronto para a invasão. De seu lado, o reino do Congo também declara guerra a Negreiros.

Com três mil arqueiros, milhares de guerreiros africanos, entre os quais os Jagas, 450 mosqueteiros[90] e grande experiência das guerras brasílicas, marchava o exército de Negreiros rumo a Ambuíla, local da batalha. No outro extremo, Mani Mulanza contava com 190 mosqueteiros e dezenas de milhares de arqueiros, zagaieiros e outros combatentes; acompanhavam também o exército três padres. Deu o esperado. A vantagem do poder de fogo de Negreiros, somado ao poder de combate dos Jagas, supera a vantagem numérica dos exércitos do Congo.

Ferido por uma dessas armas [espingardas a roldete], o Mani Mulanza tombou e foi decapitado por um Jaga. Quando sua cabeça rolou, seu exército veio abaixo. Segundo relato enviado por André Vidal de Negreiros à Corte, mais de 5 mil congoleses foram mortos em combate, entre os quais 400 fidalgos titulares do reino do Congo .

Acabava-se assim, em definitivo, com o nascente projeto de nação buscado pelos habitantes daquele território. Mais uma vez, assistíamos à destruição de comunidades e tribos pela dita guerra santa. Coincidência simbólica, a arma que atingiu Mani Mulanza era brasílica. De grande utilização na América portuguesa, esse tipo de espingarda, mais ágil, era essencial para batalhas nos trópicos, pois armas com deflagradores à mecha não funcionavam na chuva[91]. Em Ambuíla, chovia muito no dia da batalha, e os congoleses, por acharem que o exército de Negreiros não contava com armas a roldete, foram surpreendidos. Como diz um anônimo narrador lusitano,

 … e por começar a chover muito, se quis aproveitar da ocasião, que fazia inúteis as nossas armas de fogo. … [] O inimigo insistia, grandemente fiado na muita água que chovia, por lhe parecer não nos poderíamos valer das armas de fogo, engano, que os portugueses da própria água tiram raios de fogo[92].

2.8 Singularidades do Brasil

 Vimos ao longo deste capítulo uma série de características da colonização praticada por Portugal e pelas outras metrópoles no Atlântico Sul entre 1500 e 1700. Cada ponto destacado acima marcou de forma crucial a formação de nosso país. Para concluirmos, veremos agora alguns traços específicos de nossa história, que surgem de toda essa teia colonial. Comecemos pela questão territorial.Conforme discutido acima, a geografia da colônia do século XVI e XVII diferia em muito do que conhecemos hoje como território brasileiro. Mostramos que a região amazônica e paulista constituíam universos à parte de nosso mapa seiscentista. As divergências iam além de questões geográficas, permeando também as relações sociais, políticas e econômicas.

São Paulo era tido como território em levante permanente. Por não se encaixar no sistema sul-atlântico, recorrentemente, os interesses paulistas não se compatibilizavam com as ordens régias e anseios brasílicos. Evidência fundamental dessa relação antagônica era a insistência dos paulistas em cativar índios e sua eterna briga com os jesuítas. A não participação dos bandeirantes no circuito negreiro fazia com que estes se comportassem como peixes fora do litoral . Os paulistas eram, como mostra Alencastro, anti-jesuíticos, antimetropolitanos e antieuropeus.

No Pará e Amazonas, que se aproximavam muito mais de São Paulo, apesar da distância física, o problema era o mesmo. Sem se conectar ao sistema sul-atlântico, permaneceriam isolados do grande comércio e, no limite, do esquema colonial. As tentativas de trazer esta região para o sistema mercantil estariam sempre baseadas nos pilares explicitados acima, como mostra um plano da Coroa lançado em 1680, que sobre uma possível solução conclui: “abre-se o mercado de escravos africanos na região, e veda-se o acesso dos colonos ao mercado de escravos americanos”[93].

Prova bastante forte desse argumento são as rochelas,  ou zonas de resistência ao poder monárquico e metropolitano, encontradas por Alencastro no Brasil desse período. São quatro ao todo: São Paulo em 1654, Pará e Maranhão no mesmo ano, na serra de Ibiapaba no Ceará após a ocupação holandesa e no quilombo de Palmares[94] no ano de 1694. Em suas palavras,

 Ou seja, havia quatro rochelas no Brasil seiscentista: duas em regiões brasílicas dependentes do trabalho compulsório indígena e duas em enclaves não europeus engajados numa guerra aberta contra a autoridade colonial. Nenhuma delas nas zonas irrigadas pelo tráfico negreiro[95].

 Concluímos assim a caracterização de nosso espaço econômico originário. Vejamos agora algumas singularidades sociais de nossa história, que não serão menos importantes do que aspectos territoriais. Entre estas, as principais serão: o povoamento do interior com a extinção maciça de indígenas, o avanço da pecuária, o surgimento do mulato e, por fim, a consolidação do regime escravista. Comecemos pela questão do nosso povoamento.

Entre as colônias do ultramar, a única que apresenta crescimento populacional ao longo do século XVII é a América portuguesa. Pelas contas de Alencastro, a pequena população lusa na Índia apresenta retração nesse período. Em Angola, a mesma estabiliza-se em torno de 3 a 5 mil portugueses e brasílicos no período e no Brasil dobra de 20 mil pessoas em 1570 para 100 mil em 1700[96]. Esses números nada mais são do que um resumo da história dessas colônias nesse período. Vejamos um pouco mais acerca disso.

A Índia, ocupada logo cedo, apresenta-se como o território mais vulnerável do império português. Sofre investidas constantes das mais diversas metrópoles e de povos da região, mal conseguindo os colonos se estabelecer ao longo dos tempos. A África, por sua vez, se apresentará sempre como fornecedora de braços para as outras colônias, notadamente o Brasil. Como já mencionado, nunca esteve em pauta um projeto de ocupação e povoamento do território africano. Como diz Alencastro, “a destruição constante de Angola se apresenta como a contrapartida da construção contínua do Brasil”. Provas inequívocas de tal arranjo encontram-se nas negativas dos conselhos portugueses dadas aos projetos de ligação de Moçambique a Angola, tendo em vista uma proposta de ocupação regional. O que visavam os portugueses era extrair negros da terra para fazer funcionar o sistema, como se vê nas linhas de um parecer do Conselho Ultramarino,

Em Angola nos não convinha mais conquista que a que bastasse para segurar o comércio, que melhor se franqueia com o temor da [nossa] guerra que com a execução [dela], porque além de que os sucessos são contingentes, ainda na certeza da vitória, tem a experiência mostrado que as batalhas eram as que mais impossibilitavam o negócio[97].

Selava-se, assim, a estratégia lusa com relação a Angola: feitorias, comércio e governo indireto. No caso brasileiro, sabemos que a ocupação e o povoamento figuraram em nossa história com mais força. A implantação da cultura açucareira demandava uma infra-estrutura um pouco mais complexa. A formação dos enclaves litorâneos com o subseqüente surgimento do comércio a partir de alguns produtos brasílicos vai contribuindo, aos poucos, para a ocupação do território. Aqui, veremos um ponto singular de nossa formação.

Dentro do dilema da ocupação territorial – aliança ou extermínio de nativos – encontrado nos mais distintos lugares do ultramar, a segunda via apresentar-se-á na América portuguesa já com bastante força a partir da segunda metade do século XVII. Com a estruturação do esquema mercantil açucareiro, baseado no assentamento de colonos europeus e no trabalho escravo negro, e com o advento da pecuária bovina em escala, os índios, que inicialmente apresentavam-se como aliados importantes, passam cada vez mais a ser um empecilho na dilatação das fronteiras agropastoris. Some-se a isto o já mencionado problema epidemológico e teremos tudo pronto para a via da exterminação indígena. Vejamos com mais calma essa questão.

A criação de gado bovino passa a ocupar papel importante na América portuguesa a partir de meados do século XVII. Entre seus principais produtos, destacam-se a carne para alimentação nos engenhos e o couro, importante insumo para as exportações de tabaco no final dos 1600, este chegava a representar 15% do preço final do rolo de tabaco[98]. Seja nas fazendas e trilhas do Nordeste, ao longo do Rio São Francisco, seja pelo sul, na região do Prata–Uruguai e sul do Brasil, a quantidade de bois à época pasmava alguns observadores. Como diz Antonil, após descrever o tamanho das boiadas na Bahia, “dizendo-o, temo que não pareça crível”. Ou ainda num comentário do Padre Sepp, que viu os índios de sua missão trazerem gado a seu mando do Uruguai em 1691, “ [trouxeram 50 mil reses arrebanhadas em apenas dois meses,] tivesse eu mandado, eles também teriam trazido 70, 80 ou até 90 mil”[99].

A expansão bovina será, portanto, essencial para a configuração do nosso espaço territorial, principalmente na ocupação do interior. Mas, a contribuição dessa atividade na formação de nosso país não se resume a aspectos territoriais. Será também importantíssimo seu papel na formação de uma classe social externa ao litoral – o sertanejo curraleiro – e seu estímulo à exterminação indígena.

Com a derrocada do negócio de tráfico de índios, os bandeirantes vão gradualmente se convertendo de preadores a bugreiros. Ou seja, de caçadores com incentivo de cativar para a caça com o objetivo do extermínio. Como já dito, o avanço dos rebanhos bovinos encontrava nas flechas nativas grandes entraves. Desta forma, observamos que mais e mais os serviços paulistas vão sendo contratados para a limpeza do território. Diversos são os relatos da época apontando a ferocidade dos bandeirantes nessa tarefa “a ponto de a coroa intervir para refrear a violência”[100].

Não menos importante do que o extermínio indígena, será o papel da criação bovina na constituição da raça mulata na América portuguesa. Mistura de negros com europeus e brasílicos, o mulato encontrará importante abrigo, entre outros, na atividade pecuária. Vejamos um pouco mais sobre a formação desse homem, que ocupará lugar importante na formação de nossa sociedade. Como diz Antonil, “o Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e mulatas”[101].

Miscigenação e mestiçagem; palavras parecidas, mas de significados distintos. A miscigenação, ou mistura de raças, ocorre em Angola, nas ilhas atlânticas e no Brasil. A mestiçagem, processo social que engendra uma nova raça, só ocorre no Brasil. Nas ilhas atlânticas, a maioria negra passa a representar uma ameaça enorme para a ordem colonial. Os levantes da ilha de São Tomé farão do antimulatismo uma política deliberada do colonato e da Coroa. Em Angola, veremos também o desdobramento de tal processo. Brancos evitavam relações sexuais com negras pois estas “passavam peçonha no corpo para se proteger contra estupros”, como conta um autor da época. Como dizia um relatório de 1618,

A pior gente que neste reino [de Angola] anda são os mulatos, filhos de brancos, que sabem a língua. Fazem muitas revoltas e roubam os sobas. Deve S.M. mandar não sejam encarregados de cargos de seus serviço, porque com os ditos cargos se fazem grandes ladrões e revolvem todo o reino[102].

Some-se a isto o fato de todo interior africano servir de constante refúgio de negros e mulatos e não observaremos um processo de miscigenação que se demonstre consistente e sustentado na África.

Na América portuguesa, encontraremos algo diferente. Devido às nossas características sociais e econômicas, observaremos, gradualmente, ao surgimento de um processo de mestiçagem. Seja na atividade pastoril, seja nos postos de maior qualificação nos engenhos, aos poucos, os mulatos vão encontrando seu espaço na sociedade brasileira. Aqui, pela ausência de grandes bolsões de negros como na África – apesar do surgimento de pontos específicos como foi o quilombo de Palmares – e pela maior complexidade social gerada pela ocupação do território, os mulatos terão seu lugar. Por fim, antes de concluirmos, vale a pena frisar aquela que talvez tenha sido a característica mais relevante de nossa formação: a insistência e o coroamento do modo escravista de produção na América portuguesa. Em meio a idéias libertárias e negociações de paz e possível alforria com Palmares na segunda metade do século XVII, Padre Vieira sentencia o curso de nossa história,

Porém, esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil, porque, conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro senão mais que o próprio corpo[103].

Terminamos aqui a exposição de alguns dos principais traços da formação de nosso país ao longo dos séculos XVI e XVII. Vimos que a formação de nossa nação surge da montagem colonial sul-atlântica. Como diz Alencastro,

No final do século XVII o Brasil formado a partir de Angola estava prontinho. O mercado atlântico impusera o primado do tráfico atlântico, interpretado pela igreja como uma obra da caridade cristã e de evangelização. O escravismo dominava tudo, a barreira indígena fora destroçada, o território se repovoava dentro do esquadro colonial, o gado se expandia, os mestiços e mulatos furavam o seu lugar[104].

De especial importância foi a relação Brasil – África aqui analisada por todo tempo. Essa sutileza de nossa história fica por vezes esquecida, submersa e invisível. Para trazê-la à tona foram necessários dois grandes eventos – terremotos nas palavras do autor – as guerras holandesas, como vimos aqui, e após nossa independência, o movimento das canhoneiras da Royal Navy.

Bibliografia

ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

CALDEIRA, Jorge. Viagem pela história do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

NOVAIS, F. A. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

VAINFAS, Ronaldo (Dir.).  Dicionário do Brasil Colonial: 1500-1808. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

  1. ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
  2. Ibid., p. 29.
  3. Ver box sobre mercantilismo no Capítulo 1 e também p. 14 de Fernando A. Novais, Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1993.
  4. Como mostra Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., existem estudos que indicam um fluxo constante de trocas de escravos e ouro durante a Idade Média em algumas regiões africanas.
  5. Ibid., p. 47.
  6. Ibid., p. 16.
  7. Ver a esse respeito a descrição de Alencastro sobre a não adequação das naus espanholas ao tráfico negreiro bem como a necessidade de reduzida quantidade de portos na operação do sistema espanhol. O sistema de Asientos , cujos principais usufrutuários foram os portugueses, ilustra também esse ponto.
  8. Fernando A. Novais, op cit., p. 29.
  9. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 13.
  10. Ibid., p. 14.
  11. Na verdade os portugueses perderam muito espaço nas rotas de mercadorias mortas para comerciantes africanos no início do desbravamento da África. Esse ocorrido teve grande peso na especialização destes no tráfico de mercadorias vivas, a saber: escravos. A esse respeito ver Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 50.
  12. Sociedade colonial da América Portuguesa nos séculos XVI e XVII, ver Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 28.
  13. Ibid., p. 21.
  14. “ [] … entrepostos, que não se reduziam à atividade mercantil, exercendo também funções militares e diplomáticas.” Para uma descrição mais detalhada ver Ronaldo Vainfas, Dicionário do Brasil Colonial, p. 223.
  15. Em geral, os cavalos eram utilizados na captura de mais negros. Assim a importação desses produtos potencializava o negócio negreiro na medida em que fornecia maior poder de combate e captura aos traficantes.
  16. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 46.
  17. Ibid., p. 70.
  18. Ibid., p. 59.
  19. Ibid., p. 62.
  20. A esse respeito ver o interesse dos holandeses na conquista desse arquipélago por entender que o mesmo representava posto altamente estratégico para controle das rotas do Brasil e Antilhas.
  21. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 61.
  22. A criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão, decidida em 1621, responde a esta configuração geográfica.
  23. É importante destacar aqui que rotas mais tranqüilas e ligeiras privilegiavam o transporte nos tumbeiros, reduzindo as mortes e, portanto, aumentando os lucros dos traficantes. Portanto, os circuitos Luanda — Rio e Salvador — Luanda serão bastante privilegiados. Ainda sobre o Anticiclone de Capricórnio vale mencionar a referência de Vieira a tal fenômeno como mais um milagre de Nossa Senhora do Rosário, na salvação dos negros. Voltaremos a esse ponto.
  24. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 83.
  25. Alencastro aponta também que o refluxo de capitais portugueses das Índias para o mercado Atlântico, nesse período, teve papel importante na expansão do negócio negreiro.
  26. No período de 1580 e 1640, Portugal perde sua independência e fica submetido à corte espanhola por problemas de sucessão. Em 1640 os portugueses finalmente conseguem se mobilizar para dar fim à União Ibérica, por meio da chamada Restauração. Para uma descrição mais detalhada desse importante marco da história de Portugal, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 505.
  27. Para uma biografia detalhada, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 518.
  28. Para uma breve descrição dessa nau, ver Jorge Caldeira, op. cit., p. 65.
  29. Citado na gazeta mensal Mercurio Portuguez. Ainda sobre a construção de naus brasílicas destaca-se a fragata de guerra Madre de Deus construída em 1666 também no Rio e a nau Nossa Senhora da Conceição de 1686, construída no Recôncavo Baiano. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 197.
  30. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 110.
  31. Ibid., p. 116.
  32. Ibid., p. 94.
  33. Ibid., p. 82.
  34. Ibid., p. 144.
  35. Sobre esse ponto vale destacar a queda de preço dos escravos fugidos e recapturados que se observava nos mercados do Brasil à época. Os negros que haviam habitado em quilombos ofereciam maior potencial de fuga pois tinham para onde ir .
  36. Além do pequeno comércio de plumas de Ema entre algumas tribos não é possível identificar rotas de escambo de volume e permanência consistentes entre os índios. Cf. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 118.
  37. Como mostra Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 118, em geral o poder dos chefes indígenas no Brasil era apenas moral .
  38. Ibid., p. 125.
  39. Ibid., p. 137.
  40. Para uma descrição mais detalhada desse processo, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 21.
  41. A varicela européia — ainda hoje conhecida por esse nome em Portugal — foi nomeada aqui pelos índios como catapora, ou fogo que salta. Essa expressão assustadora provavelmente expressava o sentimento indígena em relação à doença, pista do drama sofrido pelos mesmos ao enfrentar os males dos forasteiros . Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 129.
  42. Padre Antônio Vieira, carta de 12-2-1661, apud Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 138.
  43. Veremos mais adiante que nas guerras luso-holandesas o sistema paulista de escravização indígena e produção agrícola será importante fonte provedora de recursos para o resto da colônia, recursos esses que se tornam escassos devido à interrupção das rotas negreiras.
  44. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 144.
  45. Ibid., p. 127.
  46. São Paulo de Piratininga, São Paulo de Luanda, São Paulo de Goa, São Paulo de Diu, São Paulo de Malaca, São Paulo de Macau, mundo afora a Sociedade de Jesus levanta igrejas e colégios em homenagem ao santo consagrado como o apóstolo dos gentios. Ibid., p. 156.
  47. Luiz Felipe de Alencastro, Governo militar japonês. In: ––––– .O trato dos viventes. São Paulo: Cia das Letras, 2000. p. Início do capítulo sobre Evangelização numa só colônia
  48. A esse respeito é importante destacar o papel dos jesuítas na disseminação da língua portuguesa ao longo do globo, como conseqüência da necessidade da prática das confissões.
  49. Negócio, comércio.
  50. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 163.
  51. Destaca-se aqui o padre Baltazar Barreira, tarimbado evangelizador de Angola, Cabo Verde e Guiné.
  52. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 183.
  53. Ibid., p. 53.
  54. Reino da África Central.
  55. Como mostra Luiz Felipe de Alencastro, os Jagas, com suas machadinhas de ferro, foram os guerreiros mais temidos da região da África Central. A conquista de sua aliança quase sempre representava a vitória nas guerras.
  56. Chefes nativos que forneciam escravos.
  57. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 176.
  58. Ibid., p. 178.
  59. “Descimentos eram os deslocamentos forçados de índios para os enclaves europeus feitos pelos jesuítas na América. Constituíam-se numa forma legal de apropriação do trabalho indígena. As outras duas eram os resgates e os cativeiros .” Ibid., p. 119.
  60. Padre Antônio Vieira, Sermões, In: Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 183.
  61. Como mostra Alencastro, a posição de Portugal neste período era bastante delicada por causa das ameaças da Espanha e da poderosa frota naval holandesa.
  62. Para uma descrição mais detalhada da investida e permanência dos holandeses no país, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 314 e Jorge A. Caldeira, op. cit., p. 48-56.
  63. Com capital misto, público e privado, a empresa holandesa West-Indische Compagnie (WIC), irmã da Oost-Indische Compagnie (VOC), ou Companhia das Índias Orientais, visava à exploração de oportunidades de negócios do ocidente. Curioso é o seu objetivo: fazer guerra e comércio. Para tal, esta aporta em Recife, por exemplo, em 1645 com 12 navios de guerra e 3.500 soldados.
  64. Ibid., p. 210.
  65. Ibid., p. 214.
  66. Ibid., p. 219.
  67. Ibid., p. 224.
  68. Para uma breve descrição desse período da história portuguesa, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 570.
  69. Consultado pelo conselho Ultramarino sobre os grandes problemas da época, este recomenda a invasão da região do Prata para recuperar as patacas e a invasão de Angola para recuperar o trato dos negros. A segunda sugestão é aprovada, a primeira não. Os negros da África trariam as patacas de volta às veias mercantis.
  70. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., refere-se várias vezes à idéia de expansionismo atlântico fluminense ou hegemonia atlântica fluminense. passim.
  71. Ibid., p. 237.
  72. Ibid., p. 267.
  73. Ibid., p. 94.
  74. Para um breve levantamento dos diversos usos da mandioca aqui, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p.169 e Jorge Caldeira, op. cit., p. 11.
  75. Os holandesas passam a se valer dela também quando operam o tráfico atlântico.
  76. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 255.
  77. Ibid., p. 257.
  78. Ibid., p. 257.
  79. Ibid., p. 315.
  80. Ainda hoje o termo birita refere-se à cachaça. Ibid., p. 313.
  81. Ibid., p. 318.
  82. Ibid., p. 319.
  83. Ibid., p. 318.
  84. Para uma breve biografia, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 330.
  85. Ibid., p. 41.
  86. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 262.
  87. Nessas chamadas guerras de sertão, os governadores tinham direito a um quinto dos prisioneiros cativados, o quinto régio.
  88. Ibid., p. 263.
  89. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 71.
  90. Ibid., p. 290.
  91. Arma de fogo importante da época, o mosquete tinha boca estreita, bom alcance e precisão.
  92. A esse respeito, ver apêndice sobre armas de fogo em Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 371.
  93. Ibid., p. 296.
  94. Ibid., p. 142.
  95. Para uma breve descrição da história do quilombo de Palmares, ver Ronaldo Vainfas, op. cit., p. 467 e Jorge A. Caldeira, op. cit., p. 62.
  96. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 245.
  97. Ibid., p. 342.
  98. Ibid., p. 334.
  99. Ibid., p. 341.
  100. Ibid., p. 341.
  101. Ibid., p. 337.
  102. Ibid., p. 347.
  103. Ibid., p. 348.
  104. Ibid., p. 344

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