*Esse texto se baseia fundamentalmente na obra de NOVAIS, F. A. Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1993
A conquista do Ultramar e a subseqüente constituição de colônias serão marcas registradas de um período específico de nossa história — a passagem do feudalismo para o capitalismo industrial. A colonização promovida pelas metrópoles, a partir das grandes navegações, constitui-se num processo de características específicas e únicas. Diferentemente das colônias gregas ou romanas e do neocolonialismo do século XIX, o Antigo Sistema Colonial representa o processo histórico de superação do feudalismo, por meio da chamada acumulação primitiva, para o alcance do capitalismo industrial. A formação do Estado Moderno e suas monarquias, as leis que regulam o comércio com as colônias, o próprio fluxo de mercadorias ao longo do globo e a maioria dos atos praticados pelas metrópoles — Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra — apontam para a superação do período feudal, caracterizando aquilo que se convencionou chamar, entre 1500 e 1800, de a época do capitalismo mercantil. Com o renascimento comercial e o avanço da burguesia, no final da Idade Média, surgiu um desequilíbrio de poder nos feudos europeus. A igreja e a nobreza não mais poderiam reinar sós e os conflitos com a nova classe seriam constantes. Nesse contexto, o advento das monarquias absolutistas aparecerá como força de equilíbrio político na medida que tratava de subordinar todos ao rei, e orientar a política da realeza no sentido do progresso burguês. Víamos assim a formação do chamado Antigo Regime, termo cunhado para descrever o arranjo político, econômico e social do ocidente nos séculos em questão, que teria nos reis modernos sua maior expressão. Exemplo prático dos traços políticos e econômicos desse regime podem ser encontrados na legislação dos diversos países com relação ao comércio colonial da época. Os Atos de Navegação da Inglaterra, as leis que proíbem os navios estrangeiros nos portos do Brasil, a legislação colonial colbertiana, os regulamentos das companhias de comércio etc., são exemplos significativos no imenso corpo da legislação ultramarina da Europa nos Tempos Modernos. Por trás dessas leis, encontraremos ainda num plano mais profundo, a justificação teórica de todo o processo em questão. Os pensadores europeus se esforçavam para construir um arcabouço teórico capaz de fundamentar a empreitada colonizadora.
A teoria mercantilista tinha como base a idéia metalista, ou seja, a riqueza de uma nação estava diretamente associada à quantidade de metal nobre que ela possuía. Para alcançar tal desenvolvimento, recomendava-se a adoção da política econômica de balança comercial favorável. A metrópole deveria exportar manufaturas caras para as colônias e estas, por sua vez, deveriam vender os produtos coloniais, a preços reduzidos, ao continente europeu, a fim de incentivar a acumulação de lucros na metrópole. Ou seja, a colônia deveria funcionar como apêndice metropolitano, tendo por única utilidade o auxílio na promoção do processo de acumulação capitalista europeu. Em termos teóricos, a passagem do modo de produção feudal ou servil para o capitalismo industrial significa a mudança de um sistema que gera produtos para o consumo de subsistência, sem produtividade e com baixíssima escala, para um regime em que a produção de bens e serviços se dirige ao consumo de massas, a partir de elevada produtividade, especialização e mecanização do processo produtivo. No primeiro, reina a lógica da reprodução e manutenção pura e simples das pessoas. O poder se assenta em relações sociais e religiosas principalmente. No segundo, impera a lógica capitalista. Visa-se à reprodução do capital por meio da acumulação de lucros e não a de pessoas. O poder fundamenta-se no nível de riqueza, e relacionamentos pessoais e religiosos assumem importância secundária. A passagem de um sistema para outro não é imediata. Exige uma etapa transitória, que consiste na mercantilização das relações de produção. Assim, o trabalho migra de uma forma servil e artesanal para a industrial e assalariada. Nesse processo, os trabalhadores perdem a propriedade dos meios de produção e passam a vender sua mão-de-obra no mercado de trabalho. A divisão de tarefas, tanto social quanto individual, torna-se possível e, finalmente, introduz-se a mecanização. Completa-se, assim, o ciclo. A produção de excedentes, praticamente inexistente no regime servil, é estimulada pelo comércio. Com o aumento do seu volume, o capital vai migrando da esfera mercantil para assumir a forma industrial, onde passa a tomar conta de todo o processo de produção.
Em termos concretos, observa-se essa passagem na seqüência de eventos que vai do final da Idade Média até a Revolução Industrial. Essa transição, que se mostra tão suave na descrição teórica, será marcada por todo tipo de sobressaltos e tensões. Seja nos conflitos entre reis e nobres, seja nas guerras entre nações ou na violência inglesa do processo de cercamentos, as conseqüências políticas e sociais do avanço do capitalismo marcarão de forma significante a constituição do mundo contemporâneo. Esse período histórico, que vai dos 1500 aos 1800, que chamamos de capitalismo mercantil, representa, na prática, a transição descrita acima teoricamente. É a partir desse contexto que devemos entender o Antigo Sistema Colonial, como parte constitutiva do processo de acumulação primitiva. Terá, portanto, papel fundamental na superação das relações feudais, tanto na esfera política quanto social. Será ainda essencial para o alcance da capitalização, de acumulação de lucros e escala necessários para a introdução da mecanização e das formas fabris de produção. Analisaremos, a seguir, aqueles que serão condicionantes da transição em questão e, portanto, pilar do sistema colonial: comércio monopolista e escravismo. Poder-se-ia argumentar que a colonização da Nova Inglaterra e a ocupação de suas áreas vizinhas, representa contraprova do que se defende aqui. Na verdade, esse exemplo constitui-se em exceção, na medida em que características sociais de sua metrópole e especificidades climáticas deslocam-na para fora do sistema colonial. É, de fato, a partir desse conceito que melhor podemos entender a trajetória dessas colônias que marcarão, em 1776, o início do fim do Antigo Regime.
Desde cedo, os novos territórios descobertos passam a receber estrangeiros de várias nações que se motivavam pela extração das novas riquezas. A estratégia inicial de muitas das metrópoles para a ocupação e exploração destes territórios foi a concessão de direitos territoriais e a associação com capitalistas das mais diversas nacionalidades. Estimulava-se, de início, uma ocupação que resultava na prática de comércio concorrencial. Ocorre que, tanto nos mercados coloniais, onde a disputa de compradores aumentava o preço das especiarias locais, quanto no mercado europeu, onde a disputa entre vendedores reduzia o valor das riquezas coloniais, o comércio concorrencial tornava-se problemático. Os grandes riscos e custos envolvidos nas empreitadas ultramarinas passariam, por vezes, a superar os lucros extraídos de um sistema concorrencial. Por isso, a condição essencial para a sobrevivência mercantilista será, como veremos, o enquadramento do sistema de comércio num esquema monopolista. Os lucros coloniais devem ser extraordinários, não se resumindo a ganhos normais associados a um arranjo liberal. Devem esses lucros concentrar-se nas mãos das elites burguesas européias, restando às colônias somente o mínimo necessário para contentar a elite local: grandes latifundiários e senhores de escravos responsáveis pela manutenção do sistema.
A Holanda se caracteriza, desde cedo, como importante pólo comercial do norte europeu. Com Bruges, na Baixa Idade Média, passando pela Antuérpia nos 1500 e culminando com Amsterdã em 1600, os países baixos ocuparam papel fundamental no renascimento comercial europeu, rivalizando com as cidades italianas. Por sua localização geográfica privilegiada, essa região seria sempre entusiasta do livre comércio. Seus lucros eram originados, na maioria das vezes, de revendas entre regiões européias, caracterizando assim o chamado carrying trade. Com o advento das expedições ultramarinas, vários produtos coloniais, principalmente os portugueses, são drenados para a rede mercantil flamenga. Não tardará, portanto, para que os capitalistas dessa região se mobilizem para montar suas próprias companhias de comércio, furando a intermediação dos estados precursores, Portugal e Espanha. Baseados numa tradição mais liberal, os holandeses montam, no início dos 1600, cerca de dez companhias, somando um total de 65 navios, para explorar as riquezas coloniais do Oriente. Dessas, praticamente todas apresentam resultados desastrosos, principalmente pela questão da competição na compra das especiarias na Índia. Começa a surgir assim a consciência da necessidade do monopólio para o êxito da empreitada mercantil, a qual culmina na criação da Companhia das Índias Orientais, após pedido feito pela companhia de Amsterdã e negado pelos Estados Gerais, que passa a deter a exclusividade do comércio entre o Cabo da Boa Esperança e o estreito de Magalhães. Sem monopólio não há comércio possível, não há geração dos lucros necessários para a acumulação capitalista.
Outro exemplo marcante do papel do estado e da regulação monopolista no esquema mercantil encontra-se na colonização do Brasil e das ilhas atlânticas portuguesas. O início do processo de exploração do Atlântico português se dá na Ilha da Madeira. Após a ocupação territorial, introduz-se a cultura açucareira tendo em vista o mercado europeu. De grande importância neste processo são os capitais genoveses, que, ao procurar romper o monopólio veneziano na comercialização desse produto, estimulam o avanço da economia madeirense. Já em 1498, aparece no mercado europeu uma situação de excesso de produção, fazendo com que Portugal, por meio de D. Manuel I, fixe cotas para o cultivo desse produto. Antes ainda, protestos contra o livre fluxo de estrangeiros nas ilhas já surgiam na corte portuguesa. A concorrência na compra e na venda das mercadorias coloniais reduzia os lucros metropolitanos, trazendo grandes perdas aos capitalistas lusos. Recomendava-se nas cortes de Évora que o comércio por estrangeiros fosse proibido. Novamente aparecem evidências da necessidade de monopólio do comércio colonial. Na verdade, a característica monopolista do comércio português já poderia ser observada desde o início da empreitada colonizadora. No século XV, toda exploração da costa africana era de exclusividade da monarquia absolutista, apanágio do rei. Obviamente, podia esse conceder, vender, alugar ou transferir os direitos de monopólio para capitais privados, tanto nacionais quanto estrangeiros. Em alguns momentos, como na Restauração, a barganha de tais direitos mostra-se essencial para a manutenção da autonomia política portuguesa.
No Brasil, o processo não foi diferente. Do início dos 1500 a 1570, quando se montava ainda a economia açucareira, o comércio era praticamente livre. Capitais europeus, sobretudo flamengos, circulavam por nossos portos, fazendo com que o açúcar prosperasse. Em 1571, que marca o início da fase áurea açucareira, decretava D. Sebastião a exclusividade dos navios portugueses no comércio da florescente colônia. No início dos 1600 observava-se grande aumento de preços no mercado europeu, não ocorrendo o mesmo na colônia. Colhiam-se os frutos do regime monopolista: os aumentos de preços eram convertidos em lucros. Vemos assim, novamente, a repetição da fórmula colonizadora de áreas comerciais virgens: ocupação, livre comércio, enquadramento, monopólio e acumulação de lucros metropolitanos. A partir de 1605, Portugal decreta novas restrições ao acesso de navios estrangeiros ao Brasil, Índia, Guiné e ilhas atlânticas. Esse tipo de postura segue com o alvará de 1684, que vem ao encontro de uma representação de mercadores portugueses que diziam encontrar os mercados brasileiros já abastecidos quando lá chegavam seus navios, ou ainda com a ordem régia de 1711 e os alvarás de 1772. Veremos que esse modelo, característico do capitalismo mercantil, vai se repetir com as outras metrópoles.
O caso espanhol será similar ao português. O aumento da exploração de produtos da América faz com que Colombo, o precursor da empreitada hispânica, passe a ocupar papel secundário nas cortes e projetos ligados a exploração do ultramar. Em 1503, funda-se a casa de Contratação de Sevilha que será responsável por todo o comércio da América hispânica. O sistema espanhol, baseado no regime de porto único, também caracterizava bom exemplo de legislação monopolista. Nesse, quaisquer mercadorias coloniais deveriam rumar para portos específicos da metrópole. Com o acirramento da pirataria e contrabando, institui-se, entre 1564 e 1566, o regime de navegação por comboios de flotas ou galeones. Pela nova ordem, esses deviam navegar em épocas precisas, com rotas predeterminadas, e visando apenas a portos privilegiados do mundo americano. É fato que o esquema hispânico apresentava grandes deficiências. Seja pela inflexibilidade do sistema de porto único, seja pelas oportunidades que os contratos de Asiento davam aos estrangeiros, as Índias de Castela encontravam-se constantemente visitadas por outras metrópoles. Entretanto, tal fenômeno não contradiz o argumento do comércio monopolista, simplesmente mostra a dificuldade de os espanhóis imporem sua legislação ultramarina.
A expansão francesa inicia-se, como a holandesa, com o corso e a pirataria e algumas tentativas frustradas de ocupação em territórios ultramarinos. É com Richelieu que a colonização adquire força. Criam-se companhias de comércio da Nova França (1627), Ilhas da América (1635), Senegâmbia (1641), Oriente (1642) que apesar de não serem completamente bem-sucedidas lançam as bases do projeto francês. Colbert, por sua vez, intensifica a proposta de Richelieu, praticando com rigor o mercantilismo. Portanto, é também monopolista, por meio do regime de Companhias, o sistema francês. Na Inglaterra, que será o berço da Revolução Industrial, encontraremos, também, muitas evidências do funcionamento da estrutura colonial. Colônias da Nova Inglaterra à parte, todo sistema inglês funcionará nas mesmas bases das outras metrópoles. Seja com a East India Company, que tinha o monopólio do Índico, seja nos famosos atos de navegação, era por meio do monopólio metropolitano que operavam os capitalistas ingleses. Em 1651, Cromwell estabelece a exclusividade de navios ingleses e de suas colônias no transporte de produtos da América, Ásia e África para a Inglaterra. O Stape Act, de 1663, proibia às colônias importarem em navios que não tocassem em portos ingleses. Em 1673, tem início a taxação de produtos que circulavam de uma colônia para outra.
Enfim, todo sistema colonial armava-se em torno da acumulação capitalista primitiva da classe burguesa européia. Transações entre colônias eram proibidas. A renda gerada no ultramar deveria ser necessariamente transferida, por meio do exclusivo comercial, para a metrópole. A livre circulação de mercadorias e a transferência dos ganhos de comércio para os agentes coloniais era impensável. O ultramar estava a serviço da transição feudalismo para o capitalismo que se desenvolvia no velho continente. O comércio colonial deveria ser monopolista. O livre fluxo de mercadorias comprometeria os lucros burgueses necessários à transição capitalista. Mas e quanto às formas de trabalho na colônia? Não poderiam ter sido livres ao invés de compulsórias? No momento em que os países europeus transitam para o capitalismo, cuja principal característica é o abandono das relações servis de produção para a mercantilização da mão-de-obra de escravos e servos para assalariados, não parece um contra-senso o ressurgimento do escravismo no mundo colonial? Já sabemos que a colonização dos novos espaços a partir de 1500 não visava ao povoamento ou ao expansionismo social europeu. Os novos territórios eram conquistados e desbravados como meio de enriquecimento, como ferramenta de acumulação capitalista. Sua ocupação não era mais do que conseqüência de anseios comerciais burgueses com a ampliação da economia de mercado necessária à ruptura feudal.
Na construção do sistema agrícola da Ilha da Madeira, na montagem do complexo açucareiro brasileiro, nas Antilhas de Castela e na economia açucareira das ilhas do caribe, na produção de tabaco em Delaware e no sistema produtivo de Virgínia utilizava-se a mesma fórmula. Dada a abundância de terras, uma ocupação baseada em trabalho livre levaria ao surgimento de produtores autônomos tendo em vista, principalmente, à produção de subsistência. Como se observa nas colônias da Nova Inglaterra, o trabalho livre resulta na formação do mercado interno e fortalecimento da burguesia local, desvirtuando parte do esquema mercantilista britânico. Na verdade, essas colônias fortalecem-se após o acesso ao mercado externo colonial, Antilhas por exemplo, em disputa com outras metrópoles, que lhes dará escala suficiente para o aumento da produtividade. Poder-se-ia argumentar que os novos colonos teriam a possibilidade de se especializar na exportação para a Europa, mantendo as engrenagens do sistema em funcionamento. Mas também aqui haveria problemas. Os custos salariais embutidos nos produtos teriam impacto altista nos preços dos bens da colônia, comprometendo os lucros das rotas do mercantilismo. Os capitalistas europeus, aliados às monarquias, investiam nas empresas coloniais para obter lucro. As empreitadas tinham de se pagar. As viagens deveriam apresentar alto retorno. Os novos territórios deveriam produzir mercadorias para o mercado europeu ao mínimo custo possível. O comércio dentro da colônia e entre colônias era nocivo. Por tudo isso, o trabalho no ultramar deveria ser compulsório. Caberia ao rei usar da força e decretar as leis necessárias para enquadrar as novas descobertas nesse esquema. Como diz Novais (1993), o Antigo Regime foi o universo paradisíaco do trabalho não livre. Tráfico negreiro, encomienda, mita e indenture. Formas de trabalho compulsório que garantiam o domínio político, social e econômico dos territórios conquistados. Suprimiam a liberdade dos nativos, subordinavam as elites locais por meio da dependência externa para o suprimento de mão-de-obra e principalmente no caso do tráfico negreiro garantiam a produção para o mercado europeu. Evidentemente, a partir desse esquema, a dinâmica das economias coloniais será toda dependente do mercado externo. Retrações na busca por mercadorias locais significavam estagnação interna e transferência de trabalho para o mercado de subsistência. São pois um braço complementar da Europa, economias dependentes. O trabalho compulsório é, portanto, peça importante do Antigo Sistema Colonial. Não demos justificativa, entretanto, para a predominância do tráfico negreiro em detrimento das formas de escravização indígena no Ultramar. De novo, a resposta passará pelo funcionamento das engrenagens desse todo.
A captura e cativeiro de indígenas constituía-se numa atividade interna das colônias que, portanto, não gerava rendas e lucros ao capitalismo europeu. O tráfico negreiro, por sua vez, representava um dos negócios mais rentáveis do período colonial. Além de suprir o sistema com a necessária forma compulsória de trabalho, era, portanto, responsável pela geração de grandes lucros para capitalistas e coroas das mais distintas metrópoles. O tráfico tem, assim, dupla justificativa a possibilidade de renda metropolitana e entrosamento com a forma de exploração colonial. Não é à toa que ele aparece como marca indelével do período que estamos analisando. Não cabe aqui uma análise detalhada desse episódio. Porém, dois pontos devem ser mencionados. Primeiro, sabe-se que a introdução de negros na Europa não foi bem sucedida. Após algumas tentativas em Portugal e outras nações, viu-se que não havia demanda para tal mercadoria. Esse ponto, que pode parecer detalhe, revela importante prova do esquema colonial. O trabalho escravo não ocorreu na Europa, pois essa passava do regime feudal para o capitalista do trabalho servil para o assalariado. Entretanto, implantou-se na colônia, pois essa era um apêndice do capitalismo europeu que demandava produtos específicos e baratos como discutido acima. Por fim, vale a pena mencionar o contorcionsimo moral e religioso feito na tentativa de justificar o ressurgimento da escravidão. Entre a absurda idéia da necessidade de negros para povoar a América, na falta de população européia e as pregações jesuíticas que viam na escravização a salvação, a sociedade ocidental se esmerava em tentar explicar o inexplicável.
Vejamos agora como esse sistema caminha para a sua superação. A crise do mercantilismo será gerada a partir de seu próprio funcionamento já que por definição ele é uma etapa transitória, responsável pelo abandono das relações servis para o alcance do capitalismo industrial integral. Para entendermos essa questão, devemos analisar detidamente a estrutura econômico-social encontrada nas colônias à época. Já vimos que a economia colonial se dividia em dois grandes setores. O primeiro e principal estava voltado para a produção exportadora e tinha como base o trabalho escravista nos moldes já aqui discutidos. Apareciam aí os famosos produtos do período: açúcar, tabaco, algodão etc., que eram vendidos à metrópole no esquema de exclusivo comercial. É importante destacar que era um setor escasso em capital e sem estímulo a aumentos de produtividade pela própria natureza do trabalho escravo, cuja situação subumana é condição para a dominação escravista. Assim, o crescimento desse se dava a partir de aumentos de escala, com incorporação de novas terras e escravos. Era uma economia dilapidadora, restrita à abundância de fatores de produção. O segundo setor, complementar ao primeiro, constituía-se nas culturas de subsistência e na produção de bens que não eram importados da metrópole. Aqui, mais do que no primeiro, faltava capital, o que reduzia também as possibilidades de incorporação de progresso técnico. Sua diferença principal está na existência de trabalho livre e autônomo mas, por ser este setor muito estreito, não representava grandes mudanças na colônia como um todo. Em resumo, era uma economia dependente diretamente através do primeiro setor e indiretamente através do segundo. O mercado interno era deveras restrito, já que as parcas rendas geradas desviavam-se para pagamentos de importações metropolitanas ou compra de escravos de comerciantes negreiros. Some-se a isto o trabalho escravo sem remuneração de salários e a existência de vastas áreas de produção de subsistência e teremos uma economia cuja dinâmica se assenta quase que exclusivamente no exterior com um mercado interno muito reduzido.
Em termos sociais, sabemos que a colônia tinha basicamente duas classes. Os escravos e os grandes proprietários de terras. É fato que com o avanço da ocupação territorial e o surgimento de aglomerados urbanos aparece uma classe intermediária de funções militares, religiosas e administrativas que introduzirão mais complexidade ao sistema. Não alteram, porém, seu funcionamento básico. Os proprietários produzem para a Europa explorando o trabalho escravo, o restante da economia flutua ao sabor desse setor exportador. Aqui tocamos num ponto chave do funcionamento do sistema colonial. A concentração de poder e de renda da pequena parcela que sobra à colônia nas mãos dos senhores escravistas era fundamental para a manutenção do equilíbrio colonial. Esses, ao se beneficiarem do esquema, eram responsáveis por administrá-lo e reproduzi-lo, aumentando os lucros europeus. Na realidade, como mostra Novais (1993), a burguesia européia explorava a elite colonial que por sua vez explorava os escravos. Fechava-se o ciclo. Esse equilíbrio social contribuía, portanto, no sentido da primitiva acumulação de capitais nos centros metropolitanos.
Até então não aparecem problemas. O sistema colonial trabalha de forma coerente para o velho mundo. Portanto, se quisermos compreender onde está a contradição desse processo deveremos agora deslocar nossa análise para o capitalismo mercantil europeu, pois lá encontraremos o que buscamos. Já vimos que a colonização põe os novos territórios nos trilhos, canalizando os excedentes produtivos para o enriquecimento europeu. Nada mais natural, então, que as metrópoles capazes de direcionar esses lucros para as classes burguesas dêem o salto industrial. De fato, é o que ocorre com a Inglaterra. A partir da capitalização atingida nesse período e de sua matriz institucional, os ingleses são capazes de alcançar a chamada revolução industrial. Não temos aqui nem o espaço nem o intuito de analisar essa que talvez tenha sido uma das maiores transformações já ocorridas na civilização. Nos interessará, entretanto, o impacto do início da produção mecanizada e de larga escala para nosso esquema colonial. Aparece aqui a contradição do sistema. Enquanto a produção de bens metropolitanos é de baixa escala e limitada, necessita-se de poucos e pequenos mercados para sua vazão. Com o advento da mecanização e subseqüente confecção de bens em larga escala, surge grande necessidade de novos mercados que consumam a produção metropolitana. As colônias, com seu reduzido mercado interno, passarão portanto a representar um bloqueio e não um estímulo ao avanço capitalista. Completa-se aqui a transição por nós discutida. O sistema colonial cumpre seu papel na etapa intermediária do capitalismo mercantil. O Ultramar contribui assim para gerar as estruturas que serão responsáveis pela dissolução do Antigo Regime e também do Antigo Sistema Colonial. Na verdade, não é preciso que o avanço industrial se complete como um todo para que o sistema entre em colapso. Já nos primeiros passos, a partir dos 1700, surgem tensões de toda ordem que vão minando o funcionamento colonial. Surgem disputas acirradas entre metrópoles para manter o exclusivo comercial e elites locais que passam também, aos poucos, a acumular capitais. Em todo o mundo colonial surgem os reflexos da mercantilização das relações de produção. As conseqüências sociais e políticas se fazem sentir em paralelo à evolução do processo capitalista. Como bem diz Novais (1993), não é preciso que o capitalismo industrial atinja seus mais altos graus de desenvolvimento e expansão para que o sistema colonial escravista entre em colapso. Em 1776 assistimos a independência americana que significa a ruptura do pacto colonial. Abre-se assim a chamada crise do Antigo Regime.
Bibliografia
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