*escrito com Bruce Bastos Martins
De forma muito objetiva, a ideia da praxeologia concebida por Ludvig Von Mises, economista da Escola Austríaca, é deduzir toda a ciência da ação humana e da economia a partir deste único axioma: os indivíduos agem por força da vontade de melhorar sua condição. Então “agir” é efeito da causa “vontade de melhor condição”. Esta relação de causalidade é, para Mises, um juízo sintético a priori – já falaremos o que isso significa – com o qual se deduz um conhecimento universal e, portanto, verdadeiro sobre a ação humana e a economia, pois ambos lidam com meios empregados para atingir determinados fins. Nas palavras de Mises “a praxeologia e a economia progridem passo a passo por meio do raciocínio dedutivo. Definido, com precisão, premissas e condições, constroem um sistema de conceitos e extraem por meio de raciocínio logicamente incontestável todas as conclusões possíveis”.
Mas de onde vem tanta segurança para se rogar o epíteto, podemos dizer, de Euclides da economia? Está bem claro que vem da adoção de conceitos kantianos, sobretudo do conceito de juízo sintético a priori. Vejamos o que isto significa. Immanuel Kant foi um filósofo prussiano do século XVIII que se fascinou pela física de Isaac Newton. Kant ocupou-se com, basicamente, as condições de possibilidade do conhecimento, de tal modo que sua crítica era em reação à pretensos saberes que não fossem puros de contradição ou fantasias. Para tanto ele desenvolve certas regras do conhecer, tais como as funções i) a priori ou lógica do entendimento, aquelas que independem da experiência sensível, e ii) a posteriori ou após a experiência sensível. Dos juízos daí construídos, no que se referem à relação entre sujeito e predicado, serão i) analíticos quando a relação entre sujeito e predicado é de identidade, ou seja, o predicado já está contido no sujeito, ou ii) sintéticos, o que significa que o predicado está fora do sujeito, não sendo possível conhecê-lo pela análise do sujeito. Portanto, Kant reconhece o papel necessário da experiência sensível na gênese do conhecimento, mas também define o poder de síntese da função a priori ou lógica do entendimento, na construção de conceitos com os quais é possível fazer alguma ciência de caráter universal e necessário: os juízos sintéticos a priori.
Mas, embora existam economistas que acreditam nisto, o século XVIII não foi o fim da história do conhecimento humano. O pensamento seguiu problematizando conceitos, ideias, sistemas, valores etc. A filosofia analítica do Círculo de Viena, por exemplo, no século XX, analisou a fundo fenômenos com os quais o conhecimento pretensamente universal e necessário é construído de modo a estudá-los como sistemas proposicionais distintos, separando-os para não os confundir quanto à veracidade: sistemas proposicionais nomológicos e sistemas proposicionais nomoempíricos. É importante esta distinção entre sistemas proposicionais? É fundamental para entender o erro metodológico de Kant e, por conseguinte, de Mises.
Quando Kant define a matemática como um juízo sintético a priori pelo exemplo da soma algébrica “7 + 5 = 12”, a razão estava, para ele, no fato do predicado “12” não estar presente de modo algum no sujeito “7 + 5”. Logo, o resultado desta soma algébrica estabelece um conhecimento novo, que é tanto universal como necessário. Não sabia Kant, no entanto, que, ao afirmar esta metodologia para todo tipo de conhecimento, pela qual acreditava construir juízos sintéticos a priori, estava misturando sistemas proposicionais diferentes, estendendo indevidamente a veracidade dos sistemas nomológicos aos sistemas nomoempíricos, tal como Mises faz com o sistema proposicional nomoempírico descritivo dos fenômenos econômicos. Mas o que são sistemas proposicionais?
Os sistemas proposicionais, como já dissemos, dividem-se em nomológicos e nomoempíricos. Naquele caso está-se diante de relações linguísticas puramente formais ou lógicas, nas quais as partes componentes são entidades ideais, sem qualquer referência empírica ou “denotação existencial”, na expressão de Lourival Vilanova, constituindo uma linguagem unívoca, até porque tautológica. Mas quando o sistema proposicional é construído em cima da experiência sensível, ou seja, a partir dos dados coletados pela percepção dos sentidos, então se está diante de um sistema nomoempírico, o que significa abarrotado de valores e pontos de vistas mediante os quais se propõe descrever ou significar os entes existentes.
Vejamos o seguinte exemplo, alterando o silogismo aristotélico em nome de um esclarecimento do que queremos explicar. Analisemos a veracidade das seguintes proposições: se todo homem é um dinossauro, e Sócrates é um homem, então Sócrates é um dinossauro. Ora, do ponto de vista nomológico ou formal, as proposições são verdadeiras, pois, excluído todo conteúdo empírico para ficarmos apenas com seu conteúdo lógico, não encontramos contradição alguma: se todo “a” é “b”, e “c” é “a”, então necessariamente “c” é “b”. Todavia, do ponto de vista da experiência sensível, até onde eu sei as proposições nomoempíricas descritivas da biologia não concluíram em seu sistema, até agora, que a entidade homem é identificada com a entidade dinossauro, o que conferiria veracidade à afirmação de que Sócrates foi um dinossauro ateniense. Assim sendo, o silogismo do ponto de vista nomológico é verdadeiro, mas falso do ponto de vista nomoempírico.
É preciso entender isto: a depender do sistema-de-referência escolhido, nomológico ou nomoempírico, as proposições acima serão verdadeiras ou falsas, mas cumulativamente não constituem proposições universais, pois, diferentemente do elemento sintático ou lógico, o elemento conceitual ou semântico não se permite ter uma definição universal, pois as experiências não cessam de nos conferir novos conteúdos – é o princípio da falseabilidade de Karl Popper, filósofo do século XX, mas que já estava presente no problema da indução apresentado por David Hume, pensador escocês do século XVIII.
Com as relações de causalidade não é diferente, e estamos chegando ao erro metodológico de Mises. Atribuir uma dimensão formal à causalidade não autoriza que se preencha com o conteúdo semântico que desejar, a exemplo dos conceitos de propriedade, de moeda, de trabalho etc, de modo a se convencer de que deduziu proposições universais sobre economia. Aliás, a confusão de Mises entre sistemas nomológicos e nomoempíricos é transparente quando este autor menciona o fenômeno da polilogia, confundindo sistemas lógicos com ideológicos. Por isso afirma, “o conhecimento praxeológico é conhecimento conceitual. Refere-se ao que é indispensável na ação humana. É conhecimento de categorias e proposições universais”.
Ou seja, para aqueles que não estão presos aos paradigmas da ciência do século XVIII, um saudosismo inapropriado para quem se dispõe a fazer qualquer tipo de ciência fundamentada, precisará lidar com o conhecimento produzido na filósofa da ciência e da própria ciência no século XX. Os juízos sintéticos a priori de Kant, assim como os teoremas econômicos de Ludvig Von Mises, não resistem à filosofia do século XX. A defesa de juízos sintéticos a priori é desconstruída diante do conhecimento linguístico acerca dos diferentes sistemas-de-referências, demonstrando que a formalidade do sistema não legitima a veracidade dos conceitos. Talvez sequer o aspecto formal resista ao século XX, para falar a verdade, uma vez que a fundamentação aritmética decantada da lógica, por Gottlob Frege, bem como os teoremas da incompletude de Kurt Gödel parecem derrubar até a lógica de seu pedestal apodítico. No caso dos teoremas econômicos de Ludvig Von Mises não precisamos ir tão longe, pois basta os confrontar com os diferentes sistemas proposicionais dissecados pela filosofia analítica, distinguindo o que é formal do que é conceitual, e veremos evaporar o que até então se roga como sólido. Mises está preso numa forma de pensar do século XVIII. (Resumo filosófico breve: juízos sintéticos a priori não mantêm a universalidade de seus conceitos ante o contingenciamento da experiência sensitiva, logo não representam proposições nomoempíricas descritivas universais)
Qual é diferença da praxeologia de Mises para atual, dos discípulos ?
Pô, entre em detalhes: cite os erros. Abraços 🙂
os discipulos nem tem ideia sobre o que estao falando! rs
Toda a sua argumentação contradiz o que você está tentando dizer, é inacreditável. Mas é esperado.
A beleza de Mises está no fato de sua teoria ser válida tanto lógica quanto empiricamente, não há dissociação alguma nesse sentido. As pessoas no geral agem pelo próprio interesse, incluindo você ao produzir esse artigo a fim de provar um ponto.
Amigo, isso não é contradizer nada, ao contrário, ele está mostrando perfeitamente como a praxeologia é fraca e fácil de refutar com exemplos simples e impossível de se verificar no mundo real. Ao supor algo se pode deduzir qualquer absurdo desde que se sigam as proposições. Caio é Chileno, todo Chileno é caminhão, logo caio é caminhão. Mas caio não é caminhão, caio é humano. Esse é só um exemplo de como a praxeologia é uma espécie de terra plana da economia, não pode ser provada, não tem rigor lógico, não é uma ciência, na verdade uma pseudociência, e não pode ser verificada, é como a astrologia e o candomblé, pode fazer qualquer afirmação, mas nunca vai provar nada, a própria praxeologia é avessa a prova empírica, já que tenta deduzir uma ciência humana a partir de axiomas e criar teoremas, mas isso só é possível na matemática, mundo real não pode ser feito de deduções meia boca pelo simples fato de que ele é aquilo que é real, não aquilo que eu gostaria que fosse.
Essa afirmação de que “toda ação humana é baseada na vontade, no interesse” não é verdadeira para todos os casos, logo, a tentativa de Mises de provar sua teoria como uma lei universal logo no início da sua obra “Ação Humana” se torna inválida.
Todo escravo que é açoitado diariamente pelo seu senhor para continuar trabalhando não está agindo sobre seu próprio interesse, tal como todo trabalhador na história que ficou sob a opressão de alguém. O escravo que trabalha não é escravo porque quer, não trabalha porque quer, trabalha porque é obrigado, senão vai apanhar diariamente até a morte. Não é interesse do escravo ser escravo. Como também não é interesse do trabalhador médio comum receber um salário mínimo que não lhe dá nem o acesso a um terço do que está disponível no mercado. O trabalho aqui é só pura sobrevivência.
O que Mises nos legou foi um besteirol ideológico que podemos usar para justificar qualquer tipo de opressão a qualquer povo. Logo, se eu acredito fielmente que a teoria de Mises é verdadeira, não verei problema algum em afirmar que todo escravo que trabalhava, trabalhava baseando na sua própria vontade e no seu próprio interesse. Deste ponto, justificando já escravidão, para cairmos no final do percurso no fascismo é dois palitos.
A tal praxeologia econômica dissociada da perspectiva socio-historica crítica não configura senão um sistema analítico vazio sem cor, sem cheiro, sem dor. Como diria T. Adorno, uma sociedade administrada, porém neurótica e neurotizadora.
nossa, qualquer manualzinho de psicologia de quinta categoria derruba a premissa da “ciência” do Mises no primeiro parágrafo
A savana é uma Floresta!