O lobby da “concorrência” matou a Gurgel?

*escrito com Rodrigo Martins

Enquanto a Gurgel atuou na produção de veículos para nichos de mercado ela não era vista como ameaça e atuava de forma lucrativa. No momento que resolveu criar um veículo urbano popular as coisas mudaram. O carrinho teve tamanha aceitação que tinha fila de espera de mais de 1 ano e era vendido com ágio de mais de 100%. Esse sucesso repentino contribuiu para sua morte. Para poder atender a demanda era necessário a construção de uma nova fábrica voltada exclusivamente para esse veículo, deixando a fábrica existente para o restante da linha. Aprovado o financiamento pelo BNDES como de praxe em empreendimentos desse tipo no Brasil a Gurgel comprou o terreno e iniciou a construção de sua fábrica no ceara. Então ocorreram os seguintes acontecimentos simultaneamente. i)Lobby das montadoras conseguiu a isenção de impostos para carros de até 1.0 l ou com motor refrigerado a ar para incluir a VW. Fazendo com que as 4 montadoras tivessem veículos de sua linha para atender a demanda de carro urbano popular encontrada pela Gurgel, de forma a abastecer toda a demanda reprimida antes que a Gurgel tivesse sua fábrica pronta, ii)pressão das montadoras sobre fornecedores de auto-peças, proibindo a venda de peças criadas para uma marca e compartilhada com a Gurgel. A Gurgel aproveitava muitas peças de outros veículos e isso nunca tinha sido problema. Com a proibição de compartilhamento de muitas peças teve que desenvolver seus próprios projetos dessas peças para poder continuar produzindo seus veículos, iii) BNDES atrasou sistematicamente a liberação dos recursos que haviam sido aprovados para a construção da fábrica nova. A soma desses fatores levou a Gurgel a falência.

A Gurgel começou a incomodar as grandes. Primeiramente foi a Volks, quando essa perdeu mercado para Gurgel X12 no Caribe. A Volks encerrou a linha (VW181). Logo ela incomodou todas as outras quando conseguiu o IPI a 5%. Ali ela já deixava de ser uma marca nascente e começava a preocupar pelo motivo simples que era: o carro vendia bem pra uma iniciante. Quando o governo abre a isenção para os 1.0 e corta todo e qualquer tipo de financiamento para a Gurgel inovar, começa a derrocada. Quando eles reduzem a alíquota, a Fiat espertamente pega o motor Fiasa que era do antigo FIAT 147 e do dia pra noite fazem uma gambiarra para enquadrar o motor como 1.0 e abocanharem a redução tributária. A FIAT não era essa grande montadora que é hoje. Ela foi muito apoiada pelo regime, a relação entre Italia-Brasil era muito forte na época. Não mudou muita coisa pra 1990

A Gurgel teve seus pontos positivos que a fizeram crescer e teve suas falhas que a fizeram quebrar. A parte principal de um projeto automobilístico é a plataforma, essa era projeto original da Gurgel e por sinal ponto forte do veículo, usando um sistema patenteado muito eficiente para produzir seus monoblocos “indestrutíveis” , o famoso “Plasteel” que unia propriedades de resistência a deformação da fibra de vidro com a resistência ao tracionamento do aço. Hoje uma versão aprimorada desse sistema é utilizado pela Porsche, Ferrari, Bugatti e outras montadoras de veículos de auto desempenho. No caso a evolução substituiu o plástico reforçado com fibra de vidro pelo plástico reforçado com fibra de carbono revestindo uma estrutura metálica. É também criação da Gurgel o sistema “selectration”, um sistema simples porém eficiente que permitia aos jipinhos da Gurgel com tração em apenas 2 rodas conseguir superar obstáculos em condições de competir em desempenho fora de estrada com os 4×4 da época com um custo e manutenção muito melhores. Os veículos faziam sucesso porque atendiam muito bem ao que se propunham. Outras criações da Gurgel foram desastrosas como o TTS dos Carajás, que como conceito parecia sensacional, mas na prática era péssimo de funcionamento, mas de qualquer forma desenvolvimento da engenharia os erros também fazem parte. O motor 2 cilindros do BR800 também envolve um projeto bastante oneroso de engenharia, assim como o sistema de suspensão criado para o mesmo veiculo. Tinham uma série de outros problemas, como acabamento, ruído, o próprio design rustico, mas que não eram prioridade para o público que se destinava. A Gurgel foi a grande montadora de veículos especiais nos anos 70 e 80, mas sem capital e parceiros estratégicos não iria longe. A Puma tinha maior lucratividade já que seus carros eram mais sofisticados e caros, assim como a Santa Matilde que tinha carros ainda mais caros, mais sofisticados e sinergia com a linha ferroviária. Todos esses empresários foram heróis.

O Gurgel Supermil (foto) era mais um projeto voltado ao perímetro urbano, baseado no Supermini, mas com o seguinte diferencial: motor de 1000cc desenvolvido pela própria Gurgel. A marca chegou a investir 5 milhões de Dólares na Tecprom, um centro de pesquisas e de desenvolvimento tecnológico para desenvolver o novo motor e adaptar os veículos ao mercado. Foi um dos últimos suspiros. O Supermil não chegou a ser produzido em série. a medida adotada pela Gurgel em desenvolver um motor de 1000cc não foi estratégica, e sim pela falta de garantias da Volkswagen em fornecer motores a Diesel da Kombi e os 1600 a ar. para a montadora alemã não interessava mais fabricar esse tipo de motor, fornecer peças de reposição e manutenção. Por conta disto, a Gurgel encerrou a produção do X-15 e do Carajás.

Fontes: Quatro Rodas nº 415 de fevereiro de 1993 (postada na página “Gurgel 800”) / Jornal do Brasil, 05/02/1992 caderno “Carro e Moto”, do acervo de Maximiliam Luppe.

https://quatrorodas.abril.com.br/noticias/grandes-brasileiros-gurgel-motomachine/

https://motor1.uol.com.br/news/118862/carros-para-sempre-santa-matilde-era-o-fora-de-serie-mais-caro-do-brasil/

7 thoughts on “O lobby da “concorrência” matou a Gurgel?”

  1. Caro Paulo Gala
    Sem questionar seus registros sobre a Gurgel, eu diria que a indústria automotiva nacional morreu no nascedouro e bem antes da morte da Gurgel.
    Sua execução se deu pelas mãos do GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística) órgão do então Ministério da Indústria e Comércio que, lá pelos anos 1950, ao estabelecer as políticas de incentivo ao segmento definiu um padrão de veículos que eliminou do mercado aquela que era na época a única empresa brasileira atuando no setor, a Romi, com sua Romi Isetta ou Romiseta.
    Saudações
    João Renildo Gonçalves
    Rio de Janeiro RJ

    Mais informações sobre o assunto Romiseta em: https://www.facebook.com/1435565676771126/posts/1438490249812002/

    1. É um modelo de governo que foi criado para dar errado, caso semelhante ocorreu com a Engesa. É um pais de traidores, que joga contra o próprio patrimônio.

  2. Existe uma entrevista feita por Amaral Gurgel na TV Cultura (não me recordo o ano) em que ele taxativamente culpa o governo de São Paulo e do Ceará (Fleuri e Ciro Gomes). Segundo Gurgel, não tendo recebido financiamento do BNDS, foi buscar financiamento de um banco inglês, com aval destes dois governos. Ele iniciou a construção no Ceará com dinheiro próprio, comprando inclusive o terreno. Quando ficou endividado os governos estaduais retiraram o aval do empréstimo.
    A ser pesquisado para complementação da história.

    1. A Gurgel já estava com uma divida milionária no fim dos anos 80, portanto muito antes de Ciro Gomes ser eleito, pelos registros do Banco do Ceará, a Gurgel recebeu um financiamento de 3,8 milhões de dólares, porem não honrou o pagamento. A empresa não conseguia vender seus produtos, e portanto entrou em falencia. A unica opção para o Governo do Ceará seria a estatização da empresa, não haveria outra forma de salva-la da falencia. O unico governo que poderia antes disso ter dado auxilio para a incubação da empresa seria o governo federal, proem seriam necessarios aportes bilionários para desenvolver produtos de qualidade.

  3. Não há como não culpar nosso governo pela falência da Gurgel, temos histórico nessa área. Não importando os erros da Gurgel, qualquer País desenvolvido tem interesse em ter uma indústria Nacional de Automóveis e faria todo o possível para ajudar, pois o crescimento desta a longo prazo, só traria benefícios ao País, principalmente empregos e divisas. Não adianta, não temos a mentalidade dos Países desenvolvidos, somos um País de gente estranha mesmo.

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