O Mundo Multipolar e o Papel do Dólar

*escrito por Luiz Daniel Willcox e Thiago Miguez, as opiniões e análises nesta publicação são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam a posição do BNDES em nenhum dos temas tratados aqui.

Com a eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia, as sanções econômicas impostas à Rússia se tornaram as principais armas do ocidente como forma de pressão pelo fim do conflito. Neste contexto, assim como em outros momentos recentes da história do capitalismo, como na década de 1970 ou após a crise financeira de 2008, ficou nítido como os EUA conseguem exercem seu poder por meio do funcionamento do sistema monetário internacional baseado no dólar. No caso mais recente esse poder vem sendo utilizado com uma “arma não-bélica”, mas que funciona como um grande poder dissuasor. Esse poder se manifesta, principalmente, por duas faces. A primeira, e mais óbvia, são os cortes nas linhas de crédito internacionais para o governo e para as empresas russas. A segunda é a saída ou paralisação das atividades de empresas multinacionais no país. Esse movimento, que é divulgado como um boicote ou um protesto, na verdade, reflete o temor das empresas (muitas delas estadunidenses) de não conseguir movimentar recursos financeiros ou mesmo de violarem as próprias regras das sanções e passarem elas a serem também alvo de processos internacionais. Diante desta demonstração de tamanho poderio econômico-financeiro, diversos analistas vislumbram a possibilidade de que alguns países, especialmente aqueles menos amistosos aos interesses estadunidenses, tentem substituir ou diminuir a importância do dólar como fonte de reserva internacional. Nesse cenário, a moeda chinesa surge como um concorrente quase natural, resultado da expansão política e econômica da China nas últimas décadas. Acordos entre aa própria Rússia e a China, mirando o fortalecimento de um bloco regional na Eurásia, poderiam ser o embrião de um novo sistema de pagamentos internacional. Soluções menos tradicionais, como a utilização de criptomoedas (e outros ativos digitais) também não devem ser descartadas, com países como China e Rússia não revelando suas reservas.

Assim, uma das possíveis consequências do conflito é o acirramento da contestação do poder estadunidense e a emergência de um mundo multipolar. Contudo, enquanto nas frentes industrial e militar a China já consegue fazer frente aos EUA, resta saber se este mundo multipolar também trará consigo o enfraquecimento do dólar como moeda de pagamento internacional. A criação do sistema monetário fundado no dólar é o resultado de um longo processo histórico, “herdado” pelos EUA dos ingleses após a Segunda Guerra Mundial e concluído no final dos anos 1970.  Apenas para colocar em contexto, ao final de 1979 há uma guinada na política monetária americana, que quadriplicam suas taxas de juros, atraindo grandes influxos de capital e retomando progressivamente o controle do sistema monetário-financeiro internacional.  A prof Maria da Conceição Tavares em seu seminal artigo de 1985, contra a grande maioria de analistas, afirmava que tal movimento significava a retomada da hegemonia americana. Desde então os demais países centrais, se viram obrigados a aceitar um novo padrão monetário internacional em que o dólar continuaria sendo a moeda internacional, sem, como aponta Serrano (1999) as limitações oriundas tanto do padrão ouro-libra quanto do sistema de Bretton Woods, ou seja, a necessidade de manter o câmbio fixo (para evitar a fuga para o ouro) e de evitar déficits na conta corrente para evitar reduções nas reservas de ouro do país central. Nesse novo padrão “dólar flexível” (Serrano, 1999) os EUA podem incorrer em déficits globais na balança de pagamentos e financiá-los com ativos denominados em sua própria moeda como nos outros padrões anteriormente citados. No entanto, a ausência de conversibilidade em ouro dá ao dólar confere aos EUA a liberdade de variar por sua iniciativa unilateral a paridade em relação às moedas dos outros países conforme sua conveniência, através de mudanças nas taxa de juros americanas. Como consequência disso, o padrão “dólar flexível” é inteiramente fiduciário, baseado na premissa de que um dólar “é tão bom quanto o ouro”, premissa esta ancorada no poder do Estado e da economia dos EUA no mundo unipolar pós-guerra fria (Fiori, Medeiros e Serrano; 2008).

Há duas grandes vantagens para os EUA neste sistema, a liberdade para deixar o dólar flutuar em relação às demais moedas e a eliminação completa da sua restrição externa. Neste último caso, o passivo externo é composto de obrigações denominadas na própria moeda. Assim, neste sistema todo o valor dos déficits americanos, tanto em conta corrente quanto no balanço de pagamentossão total e automaticamente financiados por um influxo de capital de curto prazo idêntico ao aumento das reservas dos outros países que, se quiserem participar da economia monetária capitalista internacional, necessariamente têm que aceitar acumular títulos em dólar (em geral a própria dívida pública americana). Desta forma, a imposição do dólar como moeda internacional cria uma assimetria muito grande entre os EUA e os demais países, visto que estruturalmente eles não ficam sujeitos à restrição externa, e se constitui como um dos pilares do seu poderio internacional. Assim, cria-se uma espécie de paradoxo. Ao mesmo que muitos países enxergam como latente a necessidade de diminuição da dependência do dólar, o colapso do sistema monetário atual seria desastroso tamanha é a sua penetração. Logo, ao contrário das outras frentes de contestação mencionadas, o sistema financeiro internacional é fruto de relações internacionais mais profundas, que requerem não apenas poderio econômico e militar, mas também uma presença mais forte em organismos internacionais multilaterais ou mesmo a criação de novos organismos, como foi o caso do banco dos BRICS. Em suma, a transformação do sistema financeiro internacional é um processo mais lento e menos autônomo para os potenciais contestadores.

Neste contexto de contestação ao poder americano e de perspectiva de que o mundo se torne multipolar com fortalecimento das economias regionais, especialmente na Eurásia liderada pela China, a eclosão do conflito e das sanções impostas à Rússia suscitam diversas questões:

  1. Qual o “poder” das medidas de exclusão da Rússia do sistema de pagamentos internacional como forma de evidenciar e fortalecer o papel do dólar?
  2. Assim como em outros momentos da história, diversos analistas anunciam o fim do sistema monetário baseado no dólar. Há sinais de que os fundamentos deste sistema baseado no dólar estariam em crise?
  3. A Rússia é ao mesmo tempo uma grande exportadora de petróleo e gás e outras commodities para os EUA e a União Europeia e também uma importadora dos seus produtos industriais. A China, por sua vez, é o maior parceiro comercial dos EUA e tem seus ativos de reserva denominados em dólar. Dadas estas características de interdependência, qual seria a viabilidade da longa duração das sanções de um lado e da “desdolarização” da economia mundial por outro?
  4. A exclusão internacional da Rússia pode funcionar como um impulsionador para “experiências alternativas” como sistemas de pagamentos chineses e criptomoedas?
  5. Que medidas os EUA poderiam adotar se a ameaça à hegemonia do dólar se tornar crível? Haveria potencial de extrapolação para além das vias econômico-financeiras?

1 thought on “O Mundo Multipolar e o Papel do Dólar”

  1. Como o dólar irá se comportar com a exigência russa que o gás exportado para a Europa seja pago em Rublo? Quais as consequências com a opção de comércio com a China ser em Yuan? A Índia comercializando em Rupias? As mesmas perguntas com relação ao Euro e à Libra.

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