*texto de Luiz Gonzaga Belluzzo
Para mobilizar esse aparato produtivo e responder a seus impulsos expansionistas, o capitalismo em sua dimensão fundamental de economia monetária, incorporou à sua dinâmica, o sistema de crédito, outrora dedicado a financiar os desatinos das majestades do Medievo e do Ancien Regime. Na economia capitalista plenamente constituída, as decisões de gasto dos empresários nos setores de bens de produção e de meios de consumo são avaliadas pelo sistema de crédito. Para tanto, diante de um certo estado de expectativas a respeito dos rendimentos futuros, os empresários dos dois setores “financiam” nos bancos a aquisição dos meios de produção e a contratação de novos trabalhadores para conquistar lucros acrescentados. Dos salários pagos e dos lucros realizados saem as poupanças privadas que vão liquidar as dívidas ou se juntar ao estoque já existente de riqueza financeira da sociedade. No livro o Tempo de Keynes nos Tempos do Capitalismo tratei da resposta de Maynard a Bertil Ohlin. No artigo A Teoria Ex-Ante da Taxa de Juro, Keynes desenvolve uma longa e minuciosa argumentação para sublinhar as diferenças entre provimento de liquidez pelos bancos para o financiamento do investimento e a poupança decorrente da renda já criada. Ainda que ironicamente admita a possibilidade de alguém projetar a poupança esperada a partir de sua renda futura, Keynes afasta essa possibilidade da poupança ex-ante financiar as decisões de investimento tomadas “agora”. Os empresários investidores demandam liquidez ‒ cash ‒ que não pode ser obtida das poupanças futuras. O crédito é uma aposta na criação de riqueza futura.
Assim, as decisões de gasto estão subordinadas às expectativas dos capitalistas. Controladores de riqueza monetária – do sistema bancário em derradeira instância ‒ os capitalistas dispõem do poder de criar moeda de crédito, incorporando novos títulos de dívida à sua carteira de ativos. No processo de “fechamento” do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não gasta, apropriada pelas famílias, definem o montante da poupança agregada, encarnada em direitos de propriedade ou títulos de dívida, que possuem a prerrogativa de exercer essas formas jurídicas de “apropriação” e “expropriação” contra os fluxos de rendimentos futuros ou sobre o valor do estoque de capital existente ou em formação. A poupança tem uma dupla natureza: como fluxo, é um ato negativo, abstenção do consumo; como adição ao estoque de direitos sobre a renda e a riqueza, é uma reivindicação positiva e abstrata à posse da riqueza social. Sua utilização – mediante a aquisição de ativos novos ou existentes, reais ou financeiros ‒ vai necessariamente reconfigurar a situação patrimonial de empresas e famílias. Assim, o fluxo de poupança redefine, na margem, a posição do balanço de empresas, famílias e governos, ou seja, as mudanças patrimoniais decorrentes da acumulação do estoque de passivos e de ativos – direitos e obrigações que incidem sobre a renda e o patrimônio dos agentes privados e públicos.
O sistema monetário, incluído o Banco Central, é incumbido de regular a expansão da moeda de crédito criada a partir dos empréstimos. Esses empréstimos geram depósitos que podem ser mobilizados como meios de pagamento. Não custa repetir: é o gasto que cria a renda expenditure creates income. O que permite aos empresários e consumidores gastarem acima de sua renda corrente é a existência do crédito. O crédito é uma aposta, uma antecipação, sujeita ao risco de perdas, do valor a ser criado mediante a contratação da força de trabalho e dos meios de produção. Os bancos devem sancionar a aposta dos empresários e dos consumidores, imaginando que os lucros e rendimentos gerados serão suficientes para pagar os empréstimos e ainda produzir um sobrevalor monetário.
Reiteramos o que foi dito no capítulo anterior: “Concentrado no aparato dos bancos e demais instituições financeiras, o crédito é riqueza potencial em sua forma mais desenvolvida. Os movimentos de expansão e contração do crédito pertencem à intimidade da dinâmica capitalista e não podem ser entendidos como distorções ou anomalias, como pretendem os economistas da Escola Austríaca.” Ao formular a hipótese sobre a demanda efetiva Keynes concebeu as decisões de produção dos empresários de bens de consumo e de bens de produção como simultâneas, guiadas, em condições de incerteza radical, por expectativas a respeito de horizontes temporais distintos. As decisões de produção corrente, informadas pelas expectativas de curto-prazo definem a utilização da capacidade existente e se combinam com as avaliações de longo prazo que determinam as decisões de investimento. Isso ocorre em cada ponto da curva de demanda efetiva. Em cada momento, a renda agregada resulta das decisões de gasto tomadas “coletivamente” pela classe capitalista a partir de avaliações efetuadas por cada empresário individual a respeito do mais valor que antecipam obter. Portanto, o que os empresários estão decidindo gastar agora na produção de bens de consumo e de bens de investimento está a criar a renda da comunidade.
Se considerarmos uma economia com dois setores, a simultaneidade das decisões de produção é importante para a interpretação do significado do multiplicador keynesiano ou dos multiplicadores de Kalecki. Em ambos os autores a ideia de multiplicador tem por objetivo estabelecer uma hierarquia das decisões de gasto: as variações nas decisões de produzir correntemente bens de investimento para criação de nova capacidade determinam as variações no volume que deve ser produzido no setor de bens de consumo (Keynes). Essa hierarquia revela o tipo de decisão (a decisão de investir) fundamental para a determinação das variações na renda e no lucro agregados. A grande concentração de capital fixo e dominância dos bancos na intermediação financeira ancoram a dinâmica do capitalismo no aumento da produtividade social do trabalho, o que, por sua vez, impulsiona a competição entre as empresas pela inovação tecnológica. A incorporação de novas gerações de insumos e equipamentos reduz, no mesmo movimento, o tempo de trabalho e o número de trabalhadores necessários para produzir bens e serviços.