Redes produtivas: personbyte, firmbyte e cadeias globais de valor

Quando existem retornos crescentes de escala em uma firma ou setor, o aumento da quantidade de utilização de um fator de produção determina um aumento mais do que proporcional da quantidade do produto final. Por exemplo, um aumento de 10% da força de trabalho determina um aumento de 15% da produção. Empresas ou setores que operam com custos fixos relevantes em geral exibem esse tipo de retorno de escala. Nesse caso, um aumento de quantidade produzida reduz o custo marginal de produção e significa, portanto, um maior produto marginal do fator adicionado. Essas empresas e setores têm, portanto, fortes estímulos para expandir produção na busca de aumentos de lucros e costumam apresentar importantes ganhos de produtividade. As atividades com altos retornos crescentes exibem também, em geral, fortes externalidades de redes e dinâmicas de aglomeração onde os “first movers” ganham posição de destaque no mercado. São dinâmicas com “lock in” e portanto “path dependent”, que formam importantes redes locais produtivas (ver trabalhos de Paul Davis e Brian Arthur a respeito do tema).

As atividades de produção industrial e manufatureira exibem em geral esse tipo de característica. Commodities e serviços não sofisticados, por outro lado, apresentam via de regra retornos decrescentes de escala e não são produzidos em redes complexas. Nesses casos o acréscimo de insumos produtivos tende a aumentar o custo marginal de produção e diminuir o produto marginal do fator. Uma concentração excessiva do tecido produtivo de um pais em atividades desse tipo tende a diminuir a produtividade agregada dessa economia. Uma dinâmica de urna de Polya ajuda a entender a formação dessas redes produtivas locais a partir da descrição do funcionamento de processos com retornos crescentes. Imagine uma urna que contém inicialmente 10 bolinhas azuis e 10 bolinhas vermelhas; agora para cada bolinha azul retirada aleatoriamente da urna, acrescente mais uma azul e repita o procedimento para bolinhas vermelhas. Depois de algum tempo a urna estará mais carregada de bolas azuis ou vermelhas dependendo da aleatoriedade dos passos iniciais do processo. Digamos que o acaso tenha favorecido as bolinhas azuis no começo, depois de muitas repetições desse processo a urna estará cheia de bolas azuis e com uma proporção bem pequena de bolas vermelhas. Quanto mais bolas azuis se coloca na urna, maior a probabilidade de se retirar novamente uma bola azul. Se o processo continuar as bolas vermelhas praticamente desaparecerão como proporção das azuis. Esse tipo de dinâmica ilustra claramente um processo de retornos crescentes e “path dependent”. Agora vamos imaginar que as indústrias transacionáveis mais complexas e sofisticadas de um país e do planeta operam sujeitas a esse tipo de dinâmica. Quanto maiores as economias de escala presentes na indústria e no processo, maior a probabilidade de retornos crescentes e de concentração da produção a lá urna de Polya.

Se isso é verdade, uma abertura ampla e generalizada do comércio mundial levaria a fortes concentrações regionais das indústrias mais sofisticadas, com maiores retornos de escala e com maior “tradeability”, como bem argumentou G. Myrdal em seus trabalhos pioneiros sobre o tema. Por exemplo; Alemanha, Japão, China e Coreia do Sul hoje. As indústrias bolinhas azuis iriam todas para esses países. Vamos fazer agora o mesmo experimento da urna de Polya imaginando que para colocar uma bolinha indústria azul na urna da Alemanha temos que tirar uma bolinha indústria azul da urna brasileira. E assim continuamos sorteando bolinhas na urna alemã e cada vez que sai uma azul, tiramos mais uma do Brasil e mandamos para lá. Depois de algum tempo teremos aqui só bolas vermelhas e azuis por lá. É claro que o limite para esse processo são os custos de transporte para se trazer os produtos de lá para cá e outras barreiras comerciais do tipo tarifas e taxa de câmbio.

As economias de escala e retornos crescentes geram forças centrípetas (em relação aos polos já existentes) e os custos de transporte, do trabalho e de ocupação geram forças centrífugas. A localização das redes produtivas ao redor do globo dependera, portanto, da resultante dessas forcas, trazendo importantes consequências para países desenvolvidos e em desenvolvimento; algo que Krugman, Fujita e Venables discutiram amplamente do ponto de visto teórico em seus modelos do tipo centro periferia da chamada nova geografia econômica seguindo os clássicos do desenvolvimento; algo que estava presente já nos clássicos trabalhos de Alfred Marshall sobre economias de aglomeração, redes produtivas locais e externalidades positivas presentes nas suas analises de “distritos industriais” do final do século XIX.

Como ficará claro adiante, uma questão fundamental sobre toda a discussão de redes produtivas e sua relação com o desenvolvimento econômico, destacada por todos autores já mencionados, e’ a questão da não “tradability” dessas redes, ou seja, a dificuldade de leva-las para fora do pais como num quebra cabeças que se monta e depois precisa ser transportado. As capacidades locais produtivas contidas nessas redes são insumos não transacionáveis, as redes produtivas não “viajam bem” e, portanto, são locais e se instalam em determinados países. Logo o desenvolvimento econômico e’ sempre um fenômeno regional e local. As regiões, cidades e países que tem as redes produtivas mais complexas e sofisticadas são ricos e desenvolvidos. Os mapas abaixo retirados do Atlas da complexidade para o mundo e para o Brasil (a partir do site Dataviva que desenvolveu um Atlas para o Brasil) mostram, por exemplo, os principais produtores de aviões, helicópteros e carros em termos de países e cidades. É possível perceber a forte concentração regional existente na produção desses bens complexos no Brasil e no mundo.

image1image2image3Os insights de economias de rede são, portanto, chave para se entender a complexidade produtiva dos diversos países e sua conexão com desenvolvimento econômico. A criação de produtos complexos requer grandes redes produtivas, com ampla integração entre firmas. Os exemplos clássicos aqui são computadores, automóveis e aviões que necessitam de uma infinidade de fornecedores e produtores, dentro do próprio pais de produção e fora, integrados ao processo produtivo: as chamadas cadeias globais de valor. No caso de um avião da Boeing, por exemplo, as turbinas são feitas na Europa e EUA, as asas na Asia, o trem de pouso no reino unido e partes da fuselagem no próprio estados unidos, china e outros países da Ásia. As portas dos compartimentos de carga são feitos na Suécia e as portas dos passageiros na Franca. A figura abaixo da própria Boeing mostra de maneira bastante clara a rede de produção envolvida na construção de um avião do tipo 787

Além da existência de retornos crescentes de escala na produção conforme vimos, C. Hidalgo destaca uma outra motivação bastante relevante para a estruturação da produção em redes: a limitação individual quanto à capacidade de se acumular informações. Hidalgo define o conceito de “personbyte” como a quantidade de informação máxima possivelmente armazenada por uma única pessoa; que é limitada. Assim produtos que requeiram mais do que um “personbyte” de informação para serem produzidos demandarão necessariamente trabalhos coletivos e produção integrada em rede com vários “personbytes”, de preferencia de forma harmônica para que a combinação dos diversos conhecimentos entre pessoas seja adequadamente integrado. Usando o exemplo de Hidalgo para se formar uma banda de musica; provavelmente a pior estratégia seria contratar vários músicos desconhecidos e colocá-los para tocar juntos. Uma boa banda tem uma íntima integração entre seus membros assim como um ótimo time de futebol não é apenas a somatória das excelentes habilidades individuais de cada jogador. O mesmo se aplica para redes produtivas complexas. A integração harmônica entre pessoas e firmas é fundamental e existe uma dependência mútua generalizada na rede para que o processo seja bem sucedido.

Assim como podemos pensar em “personbyte” como o limite de informação que uma pessoa é capaz de carregar, podemos também, seguindo Hidalgo, pensar em “firmbyte” como o limite de informação que uma firma pode carregar. Para produzir bens altamente complexos uma economia precisa de muitos “personbytes” e “firmbytes” que só podem ser organizados em sofisticadas redes produtivas como no caso do avião da Boeing destacado acima. Os produtos da Apple e Samsung são, também, um belo exemplo dessa dependência entre firmas para se gerar produtos complexos. A construção do iPod só foi possível graças a um micro hard drive desenvolvido pela empresa Toshiba. O Gorilla Glass, super resistente, dos iPhones foi desenvolvido por uma empresa de manufaturas de vidro em NY chamada Corning. Qualquer computador pessoal, independentemente de sua marca, carrega em geral um chip da Intel ou AMD, um hard drive Quantum, Seagate ou Fujitsu e uma memória feita provavelmente pela Kingston ou Corsair. Nas palavras de Cesar Hidalgo os computadores de hoje em dia nada mais são do que uma salada de eletrônicos.

A partir dessa nova perspectiva de conhecimento produtivo tácito e redes produtivas complexas e locais, Hidalgo e Hausmann (2012) constroem um modelo simplificado bastante interessante para entender as relações de comércio mundial como uma rede bipartite complexa formada a partir de três simples hipóteses: i)produtos do comércio mundial necessitam de capacidades locais não transacionáveis para serem produzidos, ii)cada país pode ser caracterizado por um conjunto dessas capacidades locais, iii)países só podem produzir produtos para os quais tenham a totalidade das capacidades locais produtivas necessárias. A partir dessas três hipóteses os autores são capazes de explicar a configuração e dinâmica da rede atual do comércio mundial (rede bipartite complexa de países e produtos abaixo). O mapa abaixo mostra essa rede de maneira resumida. No eixo y estão os países rankeados por ordem de diversidade de sua pauta exportadora. No eixo x os produtos rankeados por sua ordem de ubiquidade. O mapa é uma matriz de 0 e 1 identificando quais países têm quais indústrias. Além dessa bela visualização que mostra que só os países muito diversificados são capazes de fazer a maioria dos produtos não ubíquos, surge também uma característica formal comum encontrada em redes estudadas na biologia: nestedness.

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2 thoughts on “Redes produtivas: personbyte, firmbyte e cadeias globais de valor”

  1. Muito interessante! O que vem primeiro? produtividade gera complexidade ou ao contrário? Qual o trabalho de Paul Davis e Brian Arthur que fala sobre o assunto?

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