Rolls-Royce: a jóia da Coroa do governo britânico que até Thatcher subsidiou

*escrito por Felipe Augusto

Uma história de compras governamentais, subsídios, estatização e privatização com “golden share”. A britânica Rolls-Royce é hoje a segunda maior fabricante de motores aéreos do mundo. Trata-se de um segmento produtivo estratégico, pois é intensivo em pesquisa e desenvolvimento e apresenta forte relação com o setor de defesa. Não à toa, a China não poupa esforços na busca por dominar a tecnologia, como mostra a sua tentativa recente de adquirir a empresa ucraniana Motor Sich, remanescente do Complexo Militar-Industrial soviético. Fundada em 1906, a Rolls-Royce se consolidou durante as duas guerras mundiais, fornecendo quase metade dos motores aéreos encomendados pelos Aliados na primeira guerra e produzindo mais de 160 mil motores “Merlin” na segunda guerra. Esses últimos compunham os caças Hawker Hurricanes e Supermarine Spitfire que garantiram a vitória na Batalha da Grã-Bretanha. Nos anos 1960, a empresa percebeu que precisava entrar nos EUA pois estava claro que os EUA dominariam o mercado. Com esse objetivo, em 1965 a empresa fez a aposta que mudaria sua história para sempre: o início do desenvolvimento dos motores RB211, com um design revolucionário utilizando três eixos (concorrentes trabalhavam com motores de dois eixos), o que garantia menor desgaste, menor consumo de combustível e maior durabilidade.

O contrato da vida veio em 1967, quando a fabricante americana de aeronaves Lockheed aceitou comprar 450 motores. O governo britânico financiou 70% dos custos iniciais do motor, mais do que o limite de 50% que normalmente era observado em outros casos, mostrando que o segmento era visto como estratégico pelo governo. No entanto, como se tratava de um produto altamente complexo, houve significativo aumento nos custos e atraso nas entregas. A empresa começou a apresentar deterioração nos seus resultados financeiros, tendo que mais uma vez pedir auxílio ao governo. Contudo, mesmo com o auxílio de dezenas de milhões de libras, a empresa não se recuperou. Diante da situação, em 1971 o novo governo britânico, apesar de contrário a políticas industriais, decidiu estatizar a Rolls-Royce. Ademais, para manter vivo o projeto RB211, mais 425 milhões de libras em apoio governamental e contratos preferenciais foram concedidos à empresa entre 1971 e 1979.

Margareth Thatcher assumiu o governo britânico em 1979. Apesar da sua postura extremamente contrária à atuação do governo na economia, a primeira-ministra não privatizou a Rolls-Royce imediatamente. Na verdade, durante o seu mandato a empresa receberia mais 437 milhões de libras em subsídios. A Rolls-Royce somente seria privatizada em 1987 (17 anos após ser estatizada), quando os motores RB211 haviam atingido alto padrão técnico (22 anos após o início do projeto) e a empresa começou a apresentar lucratividade. Ainda assim, o governo britânico manteve uma “golden share”, que lhe permitia vetar a tomada do controle da empresa por investidores nacionais ou estrangeiros. A “golden share” acabaria sendo fundamental para o sucesso posterior da Rolls-Royce. Ela insulou a empresa da pressão do mercado de ações por retornos de curto prazo e permitiu a ela focar no longo prazo. De forma não surpreendente, enquanto o desempenho da empresa no mercado de ações não ia bem, com rendimento médio negativo entre 1988 e 2002, o desempenho econômico era muito melhor, tendo aumentado a sua participação de mercado de 8% para 30% no mesmo período, além de ter gerado milhares de novos empregos qualificados. A família de motores RB211 segue sendo o carro-chefe da empresa.  Atualmente, a Rolls-Royce é uma das poucas joias industriais remanescentes da Coroa britânica, que tem visto o país sofrer com um dos mais rápidos processos de desindustrialização já testemunhados. Porém, no caso da Rolls-Royce, nem mesmo o governo ultraliberal de Margareth Thatcher teve coragem de deixá-la sucumbir às forças de mercado.

Fontes:

Mazzucato, Mariana. Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism. Harper Business, 2021.

China tenta adquirir empresa ucraniana de motores aéreos: https://twitter.com/FelipeAugMac/status/1283188696045490177?s=20

Pourvand, Kaveh. Picking winners: How UK industrial policy ensured the success of the aerospace and automobile industries. Civitas. 2013. Disponível em http://www.civitas.org.uk/pdf/PickingWinners.pdf

3 thoughts on “Rolls-Royce: a jóia da Coroa do governo britânico que até Thatcher subsidiou”

  1. Seria interessante recuperar a história da Celma Motores que começou como a empresa de manutenção de motores de avião da Panair do Brasil. Se transformou na maior empresa de motores e turbinas para revisão, manutenção e até retrofitting da América Latina. Com a a falência da Varig não sei o que aconteceu com ela. Ficava localizada em Petrópolis RJ

  2. Muito interessante. Interessante também é que, depois do estado gastar fortunas em investimentos para erguer a empresa, assim que esta se tornou lucrativa, privatizou-a, deixando os benefícios de todo esse gasto à iniciativa privada. Muito parecido com um grande país da América do Sul atual.

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