escrito por Luiz Daniel Willcox*
* publicação inspirada nos trabalhos de Numa Mazat e Franklin Serrano: “A Macroeconomia da Federação Russa, do Tratamento de Choque à Recuperação Nacionalista: Uma Interpretação Heterodoxa” e “A Geopolítica da Federação Russa em Relação aos EUA e à Europa: Vulnerabilidade, Cooperação e Conflito”
O colapso da URSS em 1991 simboliza o fim da Guerra Fria, período que se estendeu desde o pós-guerra e se caracterizou por fortes tensões entre o bloco capitalista/ocidental liderado pelos Estados Unidos e o bloco socialista liderado pela URSS. Esta deu lugar a quinze Estados independentes, no meio dos quais figurava a Rússia. Mesmo sendo o maior destes novos países, representa apenas dois terços do território da ex-URSS e metade de sua população. Por sua vez, a Ucrânia só se transformou numa república em função da Revolução Bolchevique de 1917 e se tornou um Estado nacional autônomo em 1991, após a derrota soviética na Guerra Fria. Ao longo desse período, as relações entre a Rússia, a Europa e os Estados Unidos mudaram bastante ao que podia ser observado durante a Guerra Fria e seguiram uma trajetória conturbada, ligada principalmente às mudanças internas da própria Rússia. O período que compreende a década de 1990, sob o comando de Boris Yeltsin, é caracterizado pelo enfraquecimento da Rússia, em virtude da adoção de uma politica externa de “cooperação” com os Estados Unidos em seu processo de transição do socialismo para o capitalismo. Esta tentativa de aproximação do Ocidente foi usada pelos Estados Unidos como forma de fragilizar o poder do Estado russo. A Europa, como aliada subordinada dos norte-americanos, também participou deste processo, na medida em que lhe permitia reduzir o perigo potencial da Rússia para sua segurança.
Do ponto de vista geopolítico, houve uma expansão contínua da OTAN para antigos países satélites do Leste Europeu e outros que antes integravam a URSS. Desta forma, o mundo caminhava nos anos 90, para uma ordem mundial unipolar com a ampliação do poderio bélico americano e expansão da OTAN. Ao final dos anos 90, a chegada de Putin ao poder e a recuperação econômica que se seguiu levaram ao abandono da estratégia de aproximação com o ocidente e a uma tentativa de recuperação do poder do Estado russo. Neste período, há também a consolidação de seu papel de potência regional ao longo dos anos 2000. Esta mudança de papel trouxe a volta das tensões nas relações entre a Rússia e os Estados Unidos, que mantiveram sua estratégia de enfraquecimento contínuo do poder russo. Da mesma forma, houve transformação das relações com os países europeus, cuja interdependência econômica crescente do setor energético e de outras commodities, tornava este equilíbrio mais complicado. Ao mesmo tempo, durante este período, houve a expansão da Otan sobre a Ucrânia rompendo o compromisso (não-formal) que lhe foi imposto no início dos anos 90 de não expandir a influência da Otan por seu território.
Do lado econômico a cooperação com o ocidente se dá através do fortalecimento das políticas neoliberais. Neste sentido, as reforma da Perestroika no final da década de 1980 desorganizaram completamente o planejamento centralizado soviético, levando ao colapso do sistema em pouco mais de cinco anos. O período de transição para o capitalismo conhecido como “Tratamento de Choque” começou com as reformas econômicas implementadas na Rússia a partir de 1992 nos moldes dos princípios definidos pelo Consenso de Washington, de forma a transformar a economia russa rapidamente numa economia de mercado. O conjunto de reformas e políticas econômicas adotadas cumpriu seu objetivo de transformar rapidamente a Rússia em uma economia essencialmente capitalista. Com as reformas vieram a grande queda dos gastos, do tamanho e da capacidade de atuação do Estado russo, a liberalização dos preços e mercados e desmonetização da economia. Observa-se no período o processo de privatização dos ativos estatais e a abertura comercial e a financeira. Todos estes fatores em conjunto levaram a economia russa a uma longa e profunda recessão que durou vários anos. Além da recessão quase contínua, houve agravamento da vulnerabilidade externa herdada da antiga URSS, a partir da abertura financeira e da política de estabilização baseada na taxa de câmbio fixa após 1995. Poucos anos depois, em 1998, houve uma grave crise de balança de pagamentos.
Em 1999, como reação à profunda recessão e à crise de balanço de pagamentos de 1998, inicia-se um período caracterizado pelo nacionalismo dos recursos naturais que perdura até os dias de hoje. Esse período se caracteriza pela retomada da atuação ativa do Estado sobre a economia e pela reversão parcial das políticas adotadas anteriormente. Tal mudança foi suficiente para permitir que a Rússia se aproveitasse de um contexto externo favorável viabilizando a retomada do crescimento econômico mesmo com o forte impacto negativo da crise mundial de 2008. Exemplos de medidas foram a mudança do regime cambial, uma política de acumulação de reservas externas, o pagamento antecipado da dívida externa do setor público e a criação de fundos soberanos. As políticas de retomada do controle estatal do setor energético além de algumas reformas fiscais ampliaram capacidade de atuação ao longo dos anos 2000 pelas. Também neste período, por diversos mecanismos, várias grandes empresas russas em setores estratégicos voltaram a ser estatais e passaram a ser usadas ativamente como instrumentos de política econômica. No entanto, ainda da perspectiva econômica, a economia apresenta contradições. Apesar do controle estatal dos recursos naturais e da estrutura industrial diversificada (herdada da economia soviética ainda que defasada tecnologicamente), a economia russa combina alguns elementos de política econômica ortodoxa. Esta ambiguidade resultou numa desaceleração do crescimento na última década. Hoje possui uma estrutura industrial diversificada com produção de uma ampla gama de bens de consumo e bens de capital, dominada por empresas de controle estrangeiro absolutamente integrada à economia global porém com uma pauta de exportação composta por produtos primários e commodities. Neste contexto, desde 2008 na Guerra da Geórgia e depois em 2014 com anexação da Crimeia e posteriormente com o apoio dado às regiões separatistas do Donbass dentre outros episódios, a Rússia vem exigindo dos EUA, OTAN e dos países-membros da União Europeia, o recuo imediato da OTAN, na Ucrânia, e propondo uma revisão completa do “mapa militar” da Europa Central, definido pelos Estados Unidos e seus aliados da Aliança Atlântica após a vitória na Guerra Fria. Este movimento, após diversos esforços diplomáticos, culminou com a invasão da Rússia à Ucrânia.
*As opiniões e análises nesta publicação são de responsabilidade exclusiva do autor e não representam a posição do BNDES em nenhum dos temas tratados aqui.