Ruy Mauro Marini e o socialismo no Chile

Reformismo e contrarrevolução: o caso chileno

Por Rodrigo Medeiros, professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Exilado na cidade de Santiago, a partir de novembro de 1969, o cientista social brasileiro Ruy Mauro Marini iria testemunhar o golpe que derrubou o governo de Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. No Centro de Estudos Socioeconômicos da Universidade do Chile, Marini somou esforços intelectuais com Vânia Bambirra, Theotonio dos Santos e André Gunder Frank para formular a teoria da dependência, ainda muito incompreendida. Destacarei o seu livro “O reformismo e a contrarrevolução”, que foi editado em 2019 pela Expressão Popular no Brasil. Escritos entre 1970 e 1973, os textos de estudos sobre o Chile que compõem o livro refletem o calor do momento histórico e nos fazem pensar sobre os desafios do tempo presente, inclusive no Brasil. Logo na apresentação, consta que a leitura do livro trará elementos para refletir e “entender melhor como e por que razão o reformismo, pelo próprio fato de abalar a sociedade burguesa até seus alicerces sem se atrever a destruí-la, acaba se transformando na antessala da contrarrevolução”. Foram narrados eventos desde a reunião de Punta del Este, em 1961, quando houve o lançamento regional da Aliança para o Progresso. Apresentando dados, Marini apontou que na década de 1960 houve uma mudança estrutural e um “deslocamento do eixo de acumulação de capital” no Chile. Esse deslocamento se processou das indústrias tradicionais (têxtil, calçados, vestuário, por exemplo), comandadas pela burguesia pequena e média, para as indústrias dinâmicas que produziam bens mais sofisticados (indústria automotiva, eletrodomésticos, entre outros), sob o comando do grande capital nacional e estrangeiro.

A partir de 1967, a política do governo Frei, da Democracia Cristã (DC), se orientou para gerar as facilidades demandadas pelo grande capital, algo que implicou em uma política regressiva de distribuição de rendas. Em 1970, a crise era profunda no Chile e o desenvolvimento industrial de setores dinâmicos aprofundou as contradições no bloco burguês. A eleição de Salvador Allende veio com a promessa de uma maior democratização do Estado, que seria respaldada por reformas socioeconômicas de caráter popular. Tal fato demandava alianças políticas que aproveitassem as divisões e contradições no interior da burguesia chilena. No programa da Unidade Popular (UP) constou a definição de três tipos de propriedades: estatal; mista; e privada. Havia ainda a expectativa de se aproveitar as contradições interimperialistas em escala mundial, apoiando-se em países como Alemanha, França e Japão para substituir o peso da presença do capital norte-americano no Chile. Não se pode ocultar que existiam divergências entre as concepções táticas e políticas no interior da esquerda chilena quanto ao que seria um “governo de trabalhadores”. Erros foram cometidos pela UP. Entre julho e agosto de 1973, por exemplo, destacou Marini, entregou-se “a cabeça do allendista general Prats, então ministro da Defesa, à reação direitista, substituindo-o pelo general Augusto Pinochet, considerado um constitucionalista”. Na sua primeira metade de governo, a UP buscou desbloquear o desenvolvimento da pequena burguesia e de seus setores médios. A partir da nacionalização do cobre e de indústrias monopólicas produtoras de bens de consumo corrente, o governo promoveu uma distribuição de renda.

Não ocorria a expansão da oferta e a demanda crescia sobre a capacidade ociosa, que chegava aos 40% em 1970 na indústria, e sobre os estoques do período anterior. A redistribuição de renda operada a partir do gasto público, que se expandiu em 43% em 1971, encontrou dificuldades de sustentação no Parlamento. Estrangulamentos no balanço de pagamentos, “derivados do boicote do governo estadunidense e pelas agências financeiras por ele controladas” e da queda da cotação internacional do cobre pressionavam o governo em um contexto de aumento das necessidades de importação de alimentos. O governo Allende sofreu boicote financeiro, não reinvestimento de lucros empresariais e sabotagem, relatou Marini. O mês de dezembro de 1971, segundo Marini, marcou a ascensão de um movimento de caráter fascista no país. Conforme apontou então o cientista social, “a grande burguesia empenha-se em açambarcar as mercadorias e em especular com os preços, dando origem a um mercado paralelo, que se amplia durante o ano de 1972”. Em meados de 1972, o país viveu uma onda inflacionária que golpeou as rendas da população. A posterior crise de outubro tem origem no fracasso da gestão dos ministros Orlando Millas (Fazenda) e Carlos Matos (Economia), que apostaram nos mecanismos de mercado para equilibrar oferta e demanda na economia chilena, de acordo com Marini. A gestão de uma espécie de “economia de guerra” foi discutida no arco da coalização governista, mas não foi adotada. Na medida em que o desabastecimento se tornava grave, os lucros cresciam inclusive para as pequenas e médias burguesias, que também começaram a se beneficiar da escassez generalizada de bens de consumo. A passagem para a oposição e a unidade burguesa estavam consolidadas. Em outubro de 1972, descreveu Marini, “jamais uma sociedade latino-americana pôde observar tão claramente o enfrentamento aberto, sem rodeios de nenhum tipo, entre capital e trabalho”.

A greve patronal foi um evento que marcou a radicalização golpista. Uma de suas consequências foi a entrada das Forças Armadas no governo para acalmar temores. Para o governo da UP, “a formação do gabinete civil-militar de novembro continha aspectos contraditórios”, observou Marini. Tal fato favorecia a politização dos militares e a hegemonia dos setores golpistas. Ainda assim, em 1973, a coalização governante atingiu 44% da votação nas eleições parlamentares. Segundo Marini, o golpe ocorreu “porque somente ele permitiria resolver a crise do sistema de dominação em benefício do grande capital nacional e estrangeiro”. Como consequência, seriam desorganizados os movimentos populares, as suas organizações e os seus partidos políticos. O regime militar de então foi, na avaliação de Marini, “a expressão mais pura da hegemonia do grande capital nacional e estrangeiro sobre a sociedade chilena”. A brutal violência decorrente não pode ser esquecida. Quando o caso chileno foi comparado ao Brasil, Marini foi enfático na época ao afirmar que “o regime chileno não se diferencia, no fundamental, dos regimes semelhantes que, desde 1964, a partir do golpe de Estado brasileiro, e em ampla medida como consequência deste, estão sendo impostos na América Latina”. Para essa região, o autor citou que o grande capital esteve em aliança com os militares como resposta dos Estados Unidos à Revolução Cubana. Marini mostrou que a participação relativa do investimento estrangeiro na indústria manufatureira sofreu uma aceleração a partir dos anos 1950 na América Latina. Nesse processo histórico, decisiva foi a participação estadunidense. A “via chilena ao socialismo” expressou, na visão de Marini, as contradições intrínsecas à pretensão de transformar estruturalmente a sociedade burguesa sem ultrapassar os seus limites e, portanto, ela acabou “prisioneira das estruturas criadas pela burguesia para funcionarem de acordo com os interesses do capital”. Guardadas as devidas proporções e distâncias históricas, trata-se de um instigante livro e que nos faz refletir ainda hoje, inclusive no Brasil.

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