
Voltando a Adam Smith, a indústria permite maior divisão do trabalho por conta de suas características intrínsecas de produção, a saber, na produção manufatureira sempre há um encadeamento longo de etapas produtivas. Para se chegar ao carro por exemplo, tem que se fazer o motor, os pneus, o chassi, os vidros, os bancos, etc. Encadeamento esse que não surge na agricultura, na extração de commodities e que aparece parcialmente no processamento de commodities: as atividades econômicas são distintas em termos do “desdobramento” de seu processo produtivo. E por que isso importa? Smith mostrou logo no inicio da Riqueza das Nações que o aumento de produtividade dos trabalhadores decorre basicamente de três características do processo produtivo: divisão do trabalho, especialização e mecanização da produção.
Segundo Smith as manufaturas apresentam essas características, a agricultura não. Nesse sentido a indústria deve ser entendida como um sistema e não como apenas um setor. Agricultura e extração simples de commodities não constituem um sistema pois não há encadeamento nas etapas produtivas de seus produtos, não há elos de conexão entre o produto final e o produto inicial nesses setores, justamente os elos que poderiam ser mecanizados e apresentar potencial de especialização produtiva. A divisão do trabalho, “causa do aprimoramento das forças produtivas”, aparece na obra de Smith como um dos pilares do avanço produtivo e, portanto, dos ganhos de produtividade. O famoso exemplo da fábrica de alfinetes mostra em detalhe como a especialização produtiva e a divisão de tarefas trazem ganhos de produtividade. Para Adam Smith a divisão do trabalho encontrada nas manufaturas era da maior importância para explicar os aumentos de produtividade dos trabalhadores devido a três motivos: i)aperfeiçoamento e aumento de habilidade decorrente da concentração em uma única atividade, destreza nas palavras de Smith, ii)economia de tempo relativo a mudanças de local e de atividades em casos de não divisão do trabalho, iii)mecanização do processo produtivo ou utilização de maquinas inventadas pelos trabalhadores, fabricantes de maquinas e “filósofos”.
Smith fornece contas especificas para as fabricas de alfinetes que visitou e conjectura que um trabalhador sozinho talvez fosse capaz de produzir uns 20 alfinetes por dia, ou talvez ate mesmo um só por dia se tivesse que conduzir o processo do começo ao fim. Enquanto que numa pequena fabrica de alfinetes com 10 pessoas, graças ao processo integrado de produção e a grande divisão do trabalho, um trabalhador era capaz de produzir ate 4.800 alfinetes por dia na media. Uma produtividade individual monumentalmente maior do que no caso de produção sem divisão do trabalho. Smith menciona que as atividades não são neutras do ponto de vista de potencial de geração de divisão do trabalho; umas atividades mais propícias, outras menos. Serviços não sofisticados, agricultura e recursos naturais tendem e promover menor divisão do trabalho.
Vamos imaginar por exemplo a produção de um avião da Boeing e comparar com a fabrica de alfinetes. Milhares de trabalhadores estão envolvidos mundo afora na produção de um avião. Vários trabalhadores produzindo vários aviões por ano representam uma produtividade enorme de cada trabalhador. No exemplo de Smith, a produtividade dos trabalhadores surge da divisão do trabalho dentro da fábrica. No exemplo do Boeing, por analogia, a produtividade das empresas envolvidas na produção surge também da divisão de tarefas entre as empresas. A produtividade dos trabalhadores dentro das empresas surge da divisão de trabalho dentro da empresa e entre as empresas. Existem duas fontes de divisão do trabalho aqui: intra-empresas e entre-empresas. Quanto maiores essas possibilidades de divisão do trabalho maior é o potencial de ganhos de produtividade. Portanto quanto mais complexa a estrutura produtiva de uma economia (bicicletas, carros, trens, helicópteros, químicos) maior o potencial de divisão do trabalho e maior o potencial para aumentos de produtividade.
A agricultura, por outro lado, não desenvolve elos produtivos nem dentro dela mesma nem com outros setores. O agronegócio não é agricultura, o agronegócio é “processamento de commodities” (peito de frango, suco de laranja, açúcar); permite uma “complexificação” parcial por assim dizer da produção. O mesmo vale para processamento de recursos naturais, no limite o aço é isso. Ou seja, não basta uma atividade produtiva ser mecanizável e ter divisão do trabalho. Precisa ter elos, muitos elos, para aumentar o potencial de mecanização e divisão do trabalho; isso a agricultura simples e mineração simples não têm. O agronegócio pode gerar aumento de complexidade produtiva se os tratores, os químicos, as plantadeiras e colheitadeiras forem feitas domesticamente com competência como fizeram EUA e Canada por exemplo. Mas não há nenhuma garantia de que isso ocorra. A agricultura pode simplesmente importar as maquinas e químicos que necessita e nesse caso o pais continuara a ser uma grande fazenda high tech, que emprega muito pouca gente só para dirigir o trator, a plantadeira e a colheitadeira. O caminho do desenvolvimento mostra que é preciso sim produzir tratores, colheitadeiras, plantadeiras ou fertilizantes, ou algo complexo que não seja soja, milho ou trigo apenas.
A possibilidade de mecanização e especialização é maior na indústria do que em outros setores justamente por conta da maior possibilidade de divisão do trabalho intra-indústria e entre a indústria e outros setores, algo claramente explorado e discutido na literatura econômica estruturalista a partir das leituras de Kaldor e Myrdal dos 1960 e 1970. Esses insights de Smith foram ampliados no trabalho de Allyn Young (divisão do trabalho e increasing returns) dos anos 1920 e também no pensamento austríaco de Bohm Baverk. Kaldor parte dos trabalhos de Allyn Young e da divisão do trabalho dentro das empresas e entre as empresas para destacar a importância dos retornos crescentes de escala na indústria. Para alguns austríacos a lá B. Baverk o setor industrial também é chave.
Essa característica da indústria e das possibilidades de divisão do trabalho ficaram conhecidas como as economias de “roundaboutness” (termo chave de HPE de toda essa discussão) que diz o seguinte: se o Robinson Crusoé estiver sozinho numa ilha vale mais a pena ele gastar tempo fazendo um barco e uma vara de pesca do que sair nadando para pescar peixes. Ou seja, se ele dividir a tarefa de pesca e “mecaniza-la” ele será bem mais PRODUTIVO do que se sair nadando para pescar. Nessa linha Allyn Young destaca a importância do roundaboutness que Smith tão bem sacou e o Bohm Baverk aprofundou. Conclusão: as atividades industriais são as mais propícias para se aplicar o roundaboutness (divisão do trabalho, especialização e mecanização) e, portanto, são o motor da produtividade de uma economia.
ver bom paper a respeito do tema, evidencias empíricas, texto clássico de Allyn Young (1928), Livro do ipea sobre produtividade no Brasil vol I, vol II, paper empirico de Rodrik sobre o tema

Estava procurando exatamente um artigo com esse tema! Parabéns pelo trabalho!
Paulo, a oposição que vc faz entre a indústria e o agronegocio quanto ao poder de encadeamento parece-me carecer de base empírica e logica (parece-me), ainda que a intuição lhe dê razão. Eu gostaria de lhe pedir alguma.literatura que ataque diretamente o problema. Explico o motivo.
Na minha universidade, a Federal Rural do Rio de Janeiro, toda vez que esse tema aparece, surgem dois argumentos: 1. A tecnologia embarcada em um produto do agronegocio não fica nada a dever aos demais produtos; 2. Se levarmos em conta os setores fornecedores, a produção agropecuária e as possibilidades de processamento, haverá muitos elos.
Tenho dificuldade de aceitar esses elementos, porque me parece que parte importante do progresso técnico se situa “fora” do agronegocio, mas também fora da manufatura. De outro lado, se incluirmos no agronegocio todo e qualquer setor relacionado com algum tipo de produção agrícola e pecuária, cria-se uma distorção evidente. Como vc se posiciona?
Caro, acho que temos que fazer primeiro uma separação entre agricultura e agronegócio (colocando aqui insumos da cadeia produtiva agrícola e processamento dos produtos da agricultura). Nesse sentido o agronegócio (fertilizantes, tratores, colheitadeiras, suco de laranja, Ethanol, café em cápsula) oferecem sim potencial de divisão do trabalho; mas eu consideraria todos esse produtos como manufaturados (ou complexos) e não “agrícolas”. Ou seja, produzir soja, café e milho somente não é suficiente. Para haver divisão do trabalho relevante teria que se avançar para os insumos químicos, para a maquinaria e para o processamento dos produtos!
Nesse mapa aqui de complexidade produtividade e “conectividade” tecnológica da pra ver bem a diferença entre agricultora e agronegócio (químicos, processados e maquinaria) https://www.paulogala.com.br/?p=3966
Se importa se eu sugerir um tema para o blog?
O Brasil protege e incentiva a indústria local há muitas décadas. Enquanto isso, países que eram mais pobres do que nós na década de 1980 (não preciso mencionar quais) já nos deixaram muito para trás. Se puder, poderia comentar no blog sobre o que deu errado, na sua opinião?
Trabalhei na fábrica de uma multinacional de smartphones até 2015, e os componentes são em grande maioria importados (a empresa sofreu bastante em 2015 com o real desvalorizado). A fábrica só existe para driblar a tributação protecionista do Brasil, e não consegue nem exportar para vizinhos como Uruguai ou Peru (para esses países, sai mais barato trazer smartphones de navio da China!). As pessoas normalmente acreditam que o produto chinês é mais barato pelo custo da mão de obra, mas acho que pesa mais o fato de todo o supply chain estar instalado daquele lado do mundo. Não vejo muita chance disso mudar no futuro. Gostaria de estar errado, mas acredito que industrialização é um bonde que já perdemos.
Obrigado pelo blog.
Na Ásia houve muitos erros também! Dá uma olhada no meu post chamado política industrial para o século XXI
Fico preocupada com esse pensamento. O Brasil talvez seja um pais que não cresce muito industrialmente e, isso dificulta que as pessoas tenham emprego tal, que a renda familiar aumente. Mas, então, fico preocupada porque, por exemplo, no novo livro da Miriam Leitão, ela começa dizendo da importância que devemos dar às matas, segue dizendo que devemos chegar à um nível de desmatamento 0.
Acredito, que então, se deve pensar com equilíbrio, porque se o Brasil só explorar agricultura chega um momento que a terra fica infértil? e a manufatura vem com o mesmo problema de matéria prima.
A indústria que permite preservação e continuação seria então a de serviços… nãosei.